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Vocação, o duro caminho

19/05/2023
Paulo Henrique Cremoneze

Vocação, o duro caminho: Ir além de si mesmo. Fazer o que se é chamado a fazer e não o que se quer.

Toda decisão é importante. Algumas, porém, mais do que outras. A vida, perdoem-me o lugar-comum, é feita de escolhas, sendo que algumas provocam sulco indelével no coração, imprimem caráter ao espírito e deixam rastros.

Lembro-me bem dessa fotografia, autoral. Estava em Monte Subíaco, cerca de 100km de Roma, palco de beleza invulgar, onde no ano 800, São Bento passou anos recolhido em uma gruta e de onde partiu para fundar o primeiro Mosteiro do mundo ocidental.

Os beneditinos lá construíram um mosteiro, séculos atrás, e que se mantém belíssimo e vivo, incrustado nas rochas.

Pois bem. Estava em ponto alto de lá quando olhei para o jardim e notei um jovem que travava, pareceu-me evidente, forte luta consigo mesmo.

Sua postura corporal e o peso espiritual do lugar conduziram-me a tanto considerar.

Quem, afinal, não gosta de revestir com algumas filigranas de nobreza a própria miséria?

Fiquei a observa-lo, num voyeurismo nada sensual, por quase uma hora.

Ele estava no jardim descolorido pelo frio bem diante da capela construída exatamente na entrada da gruta onde ficou São Bento. Entre o santo e ele a distância de quase um milênio foi liquefeita e o portal do anacronismo se escancarou ao meus olhos curiosos e mente inquieta, quase atormentada.

Ambos, ele e eu, em profundo e contemplativo silêncio. Registrei a imagem em silêncio e como um Jonas às avessas desci não para ser engolido por um grande peixe, mas voluntariamente entrar no ventre da capela.

Ficamos lado a lado, quietos, absortos, em oração, seduzidos pela chama da vela que criptava da enorme vela sobre o altar.

O semblante dele era diferente do meu. Algo muito sério passava por sua alma e contorcia suas entranhas, fazendo-o curvar-se como quem tenta minimizar grande dor.

E eu, como o poeta que finge sentir dor, quase que por osmose, também me curvei, imitando-o. Eu queria ardentemente sentir aquela dor que sentenciei espiritual; e queria como expiação do meu confesso aburguesamento.

Depois ele desceu quatro pavimentos e foi ao encontro da natureza, o lugar de cura de muitos santos ao longo desses dois milênios. Era seu deserto particular de pedras e vegetação austera.

Ouso imaginar que ele discutia consigo mesmo, tentando ouvir a voz de Deus e possível chamado para a vida monástica. As circunstâncias dele, reais ou imaginárias, ditaram minhas perspectivas.

Ele agonizava em ser ou não ser o protagonista da submissão. Ingressar em um modo de vida em que se larga tudo, para abraçar o todo, o grande todo.

Um caminho de sacrifício, sem dúvida alguma. O preço de se viver o paraíso na terra é o de enfrentar o inferno a cada porção de hora.

Toda decisão séria exige peleja, detida reflexão e, não raro, alguma perda, certo grau de sacrifício. Nem tudo na vida é dilema, mas quase tudo exige tipo inegável de renúncia.

Não é fácil decidir e, mais difícil ainda é viver com as consequências que dela derivam.

Toda decisão é, em alguma medida, ato de coragem, mesmo a que é aparentemente simples.

Não sei o que o jovem decidiu. Não sei sequer seu nome. Não sei se realmente houve isso que imaginei ter havido. Não sei nem mesmo de mim, quiçá dele.

Sei que guardo a fotografia para me lembrar nesta altura da vida, já nos primeiros minutos do crepúsculo, de todas as decisões que não tomei, dos erros que cometi e das escolhas que fiz, boas ou más.

Muitas vezes, a dor é disfarçada pelos analgésicos das cores e sons do mundo, mas ela continua lá, bailando, aguardando a hora de entrar em cena e dizer: “você pode me amornar, porém não pode se livrar da minha quentura. Eu estou aqui e você mesmo que me fez.”

Unamuno diz que o ser, por pior que seja, é melhor do que o não ser. Tenho lá minhas dúvidas e terrível receio de as sanar, sob pena de me deparar com o espectro sombrio do fracasso e preferir o não ser. Se eu não fosse, não seria obrigado a ser eu mesmo.

Ao jovem sem nome meu mais profundo e reverente agradecimento.

Em Funchal, remetendo-me ao Monte Subiaco, no dia 18 de maio de 2023

Paulo, um penitente

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