
De minha avó materna tenho apenas a lembrança de sua vaga presença cuja doçura ainda hoje me enternece a memória quando me vem o anseio de receber a paz de um acalanto.
Ela se foi quando eu era pequenino, mas sinto-lhe o corpo a me aconchegar na antiga cadeira de balanço, na cadência de uma cantiga, em sua voz tão terna.
Apesar de meus dois anos de idade, sua morte caiu em meu entendimento porque, um dia, a tristeza entrou em minha casa e na morada de meu avô em forma de silêncios e lágrimas, em muitos momentos de aflição.
Quando contemplo fotos antigas, onde eu a vejo tendo-me em suas mãos com olhos úmidos e riso aberto, descubro a bênção de seu amor a recair sobre seu único neto, antes de ela, muito cedo, seguir a trilha de sua eternidade.
De minha avó paterna retenho mais lembranças de toda a ternura sentida no coração de nós dois, às vezes represada em razão de algumas turbulências na convivência com meu pai e minha mãe, cujas causas eu pude compreender, em tempos póstumos, quando a vida ensinou-me sobre o mistério dos sentimentos nos corações humanos.
Mulher imigrante, tangida pela pobreza, minha avó navegou o oceano no claustro dos porões da terceira classe, trazendo um filho, carregando segredos não desvendados e deixados para trás além do rastro de espuma de um navio qualquer, em cujo lastro fundiam-se tristezas e esperanças.
Com suas mãos ela trabalhou e se humilhou, sem jamais realizar o sonho de outros forasteiros, concretizados mais cedo ou mais tarde. Às vezes era rude, mas nunca como o foi, com ela, a própria vida.
Eu vi seus olhos negros, durante longas manhãs, no alpendre da casa de meu pai, perderem-se a fitar distâncias inalcançáveis, à procura de algum lugar do passado, para tentar reencontrar num mundo talvez desfeito por ela mesma, o caminho onde se perdeu o passo errante de seus pés.
Trazia-me, às vezes, um ramo de ameixeira com pencas de frutas douradas, ou fazia brotar dos bolsos de seus vestidos, balas e dadinhos de chocolate, expressões de um imenso gesto do amor contido que ela não sabia florir em seus lábios, pela palavra ou pelo beijo. Às vezes, dos olhos negros e severos, desciam lágrimas inexplicáveis; elas eram o sinal desse amor despercebido que somente tarde demais, pude entender.
Certa vez, minha “Nona”, como eu a chamava, foi implacável, comigo.
Eu tinha aprontado o diabo com meus amigos de minha rua, moleques, como eu. Eram as regras tortas do jogo que cada um, em seu tempo, fazia valer para a desgraça dos outros.
O bando injuriado investiu contra mim e eu me refugiei nas trincheiras do meu quintal. As hostes inimigas armadas com paus e punhos fechados estancaram à frente de nossa casa diante de minha pequenina avó postada junto ao portão.
Não ousaram a invasão. Mas esbravejaram toda a sua indignação, como fazem os endiabrados do mesmo saco quando a pimenta arde em seus olhos.
Minha avó, ao perceber serem legítimas as razões de meus adversários, deu-me a lição de sua justiça inexorável.
Abriu o portão e deixou entrar o exército dos hunos. Eu deveria enfrentá-los, no mano a mano.
Todos bateram e todos apanharam até a salvação geral daqueles briguentos prontos a fazerem as pazes, a guerrearem e a se reconciliarem muitas vezes, antes de se tornarem amigos para sempre.
Lembro-me de minhas avós, de seus afetos, suas ausências, suas lições, seus mistérios e segredos; e sinto, de repente, em minhas veias, suas vidas pulsando no meu sangue.
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