
U m sol tímido surge logo cedo. Da sacada vejo atletas que me lembram Forrest Gump, em corrida dominical. Devo acordar Beatriz? Será que trocará seu sono juvenil por uma caminhada na beira do mar, sobre a areia ainda úmida depois de tantos dias de chuva?
Meus olhos fixam-se em um casal cego e obeso apoiando-se mutuamente sob o comando de duas varinhas, na calçada. O que os leva a passear nesta hora? Redução do peso ou simplesmente a fruição do dia, curtindo o que seu sistema sensorial lhes permite? Enxergar não é necessariamente olhar, penso eu.
Por coincidência, acabara de ler no Diário de Notícias, de Portugal, um artigo sobre uma família de viajantes. O casal possui quatro filhos, dos quais três com doença ocular que, pelo diagnóstico, os levará a progressiva cegueira.
Por isso o casal decidiu largar tudo e percorrer o mundo, começando pela África e a Ásia.
Quer que as crianças usufruam e guardem na memória as belezas naturais e percebam que, apesar de tudo, têm uma vida melhor que tantos espalhados nas savanas, florestas e beira de rios.
Para surpresa do casal, diante da rica e majestosa paisagem no Zanzibar, na Turquia, na Mongólia, o que mais tem chamado a atenção dos pequenos, cientes de sua prenunciada cegueira, são pormenores como um cão errante na rua ou um besouro no alto da duna.
Talvez pensassem no esforço daquele pequeno inseto para superar o caminho íngreme e quente da areia senegalesca.
Enxergamos o que elegemos enxergar do mundo. A vida é feita de escolhas e certamente não são tão óbvias assim.
Sempre que viajo, enquanto me deparo com turistas preocupados em garantir selfies para o grupo de seguidores, quando volto me dou conta de que pouco fotografei. De que pouco reparei em imponentes castelos ou disputados monumentos.
De verdade não sou como os andarilhos de domingo em frente à minha sacada.
O que mais gosto de fazer nesses momentos de lazer e descobertas é sentar-me e observar, como faço agora.
De Paris minhas melhores lembranças são um demorado café na calçada do Le Deux Magots, a lendária cafeteria de Saint-Germain-des-Prés olhando a elegância parisiense. Ou do Sul, a choupana incrustada entre a Lagoa dos Patos e o mar, compartilhando o espaço com preguiçosos bovinos.
Em Tóquio, o frenesis de luzes e cartazes anunciando tantas quinquilharias digitais. E em Belém do Pará a imensidão da Baía de Marajó e o jeito sofrido dos vendedores no Ver-o-Peso.
Uma viagem, por mais curta que seja, dura a vida toda em nossas lembranças. E aquela imensidão de Marajó, que me parecia um mundo perdido, ficou-me na memória, como o barulho da chuva invernal de Paris e o sol a arder minha pele em Belém. São recortes, são detalhes, são sensações que trago comigo. Penso que o casal de deficientes visuais está neste momento curtindo o sabor da liberdade e o barulho do mar, mesmo sem poder vê-lo.
E aqueles pobres meninos?
Estavam solidários ao cão errante e ao besouro, nos quais reconheceram a vida latente. Um dia só lhes restará a sensação de uma brisa e a lembrança de fragmentos de um mundo que eles não voltarão a ver jamais.
Beatriz acordou.
Vamos à praia.
Deixe um comentário