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O autoengano das paixões e a superficialidade dos sentimentos

24/08/2022
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“Quando meu amor jura que ela é feita da verdade, acredito, sim, no que diz, embora saiba que está mentindo”
Shakespeare, soneto 138

Este texto não trata de um dos assuntos que formam o coração desta coluna, comércio exterior, direito internacional, seguros e transportes de cargas, mas penso ser relevante, especialmente atual e que merece ser compartilhado com o amigo leitor.

Vamos lá! Ao tratar do autoengano, Eduardo Giannetti se reporta ao grande bardo inglês:

“A lógica paradoxal do jurar apaixonado é flagrada por Shakespeare na peça dentro da peça encenada em Hamlet. À promessa de amor e fidelidade eterna da rainha, o rei, implacável, replica:

Acredito sim que penses o que dizes agora
Mas aquilo que decidimos, não raro violamos
O propósito não passa de servo da memória
De nascer violento mas fraca validade
E que agora, como fruta verde, à arvore se agarra,
Mas quando amadurecida, despenca sem chacoalho.
Imprescritível é que nos esqueçamos
De nos pegar a nós mesmos o que a nós é devido.
Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos,
A paixão cessando, o propósito está perdido.

A queda da fruta madura ao solo – propósito verdadeiro que se torna falso – é a quadratura do círculo: o embriagar-se e cair em si do amante; a inocência culpada que se flagra mas volta a si, ressurgida das cinzas, do inocente culpado. Há verdades que mentem. Loucura, sim, mas não desprovida de método. O soneto shakespeariano fere a lógica mas é fiel à vida. (…) Nem sempre o coração que temos é aquele que imaginamos ter.” [Autoengano – São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 136]

A citação aparece num contexto que trata das “delícias e armadilhas do amor-paixão”. Serve, porém, para todo tipo de afeto desordenado.

Toda paixão, salvo a redentora, consome a si própria. Quase todas trazem prejuízo; empolgam de início, depois cedem. São poucos os que as sustentam por muito tempo. Um exemplo: os bárbaros da antiga Germânia. Apaixonados, venceram algumas batalhas contra os romanos.

Algumas, não mais.

Prevaleceram os romanos não porque eram mais apaixonados, mas porque disciplinados, treinados, preparados. Pequena dose de paixão é boa, até recomendável; não muita. Sempre foi assim. E essa desapaixonada constatação parece carregar uma gravidade maior em nosso tempo, pródigo na elevação do efêmero ao nível das coisas imortais.

Na civilização do espetáculo, tão bem tratada por grandes pensadores como Ortega y Gasset, Diderot e Vargas Llosa, os afetos desordenados são especialmente caros. Às vezes temos a impressão de que nunca houve tanta frivolidade, tanta superficialidade entre as gentes.

Vivemos num tempo que superestima a paixão. E isso me parece, quase sempre, um biombo psicológico, atrás do qual se escondem situações emocionais muito complexas e espinhosas. A história e a literatura nos mostram a natureza passageira das paixões e os estragos que causam.

A comida saborosa não é a feita, necessariamente, pelas mãos de um cozinheiro apaixonado, mas pelas de alguém que sabe usar os temperos, conhece o tempo certo de cocção e tem talento e experiência. Claro que esse cozinheiro até pode ser apaixonado pelo que faz, mas não é esse sentimento que lhe determina o sucesso, e sim o conhecimento, a técnica por trás de tudo. A paixão vence batalhas, mas não a guerra.

Um dos maiores autoenganos que conheço é fruto dessa ilustre amiga da mentira. Talvez a superestimemos pelo desejo de que prevaleça o que consideramos bonito, poético. Quando nos guiamos pelas paixões, decerto não o fazemos por mal. Iludimo-nos, porém, e sabemos, de modo ou de outro, que não cumpriremos as promessas.

Preciso foi Shakespeare ao colocar nos lábios do rei da Dinamarca estas palavras: Mas aquilo que decidimos, não raro violamos. Elas me remetem, ainda que indiretamente e em situação distinta, ao que Ortega y Gasset muito bem disse sobre o homem e suas circunstâncias.

Exatamente por isso que tanto admiramos as novelas de cavalaria e o Bushidô, o cavaleiro medieval e o samurai que seguem códigos de honra inflexíveis e os mantêm a despeito dos acontecimentos e das moções do peito. Admiramos porque sabemos que viver por ideais não é tarefa fácil, e o que pensamos num momento não é exatamente o que faremos noutro. Muito feliz é Giannetti ao sentenciar: “Nem sempre o coração que temos é aquele que imaginamos ter”.

Queremos ser mais nobres, mais dignos, mais sinceros, mais virtuosos. Mas só quando nos damos conta de nossas misérias, iniciamos a jornada da mudança e da vivência com sabedoria. Quando não, quando nos prendemos à autoimagem distorcida, não só sucumbimos às paixões, como, ao justificá-las, entramos num círculo quase infinito de mentiras, egoísmo e atos capazes de ferir os outros.

Todo cuidado é pouco.

Ao tratar da agonia, segundo a raiz grega da palavra (luta), Miguel de Unamuno foi muito preciso sobre o anseio pela verdade e toda a carga que sua busca implica: “A verdade! Já não se engana mais a ninguém, e a massa da espécie humana, lendo nos olhos do pensador, pergunta-lhe sem rodeios se, no fundo, não seria triste a verdade (…)” [A Agonia do Cristianismo].

“Triste a verdade” e “viver é lutar”, duas afirmações de Unamuno que nunca foram novidade, mas que sempre têm de ser relembradas. Talvez – insisto, talvez – a dureza da verdade, o medo do seu reconhecimento, seja uma das causas que, pela via do autoengano, nos levam às armadilhas das paixões.

Alguns homens se negam a reconhecer a profundidade – disse José Ortega y Gasset – de algo porque exigem do profundo que se manifeste como superficial. Não aceitando que existem várias espécies de claridade, atêm-se exclusivamente à claridade peculiar às superfícies. Não suspeitam que é essencial ao profundo o ocultar-se atrás da superfície e apresentar-se somente através dela, latejando sob ela. [Reflexões do Quixote]

Forte, não?

Dos pensadores espanhóis colho a lição de que é muito triste viver contente com superficialidades. Tudo, absolutamente tudo, pode, deve ser e na verdade é mais profundo do que parece. Sob as coisas mais simples se escondem lições preciosas.

Para isso, contudo, é preciso estar aberto, receptivo e com olhos e coração atentos. Identificar a efemeridade das promessas e o jugo das paixões. Ordenar estas pela razão e o caminhar atencioso. Não se trata de sufocá-las, obrigatoriamente; trata-se de cuidar para que o autoengano não ganhe dimensão maior, insuportável, a ponto de se tornar engano interpessoal e danoso.

Trata-se da velha máxima grega, do oráculo de Delfos, preceito agasalhado pela doutrina cristã e presente em praticamente todos os modelos de Ética ou credos: conhece-te a ti mesmo.

Quem conhece a si mesmo sabe que dificilmente conseguirá, só pelo incenso dos sentimentos, manter viva a promessa nascida da paixão.

Quem conhece a si mesmo sabe que há algo de heroico no adestramento sentimental e que a uniformidade, quase impossível, só é minimamente conquistada por muito esforço e generosas doses de sacrifício.

O paraíso se destina aos bravos de espírito, e também a preservação da vontade original. A paixão, por sua vez, esvoaça, esfuma-se duma hora para outra, enquanto o amor, mais do que uma rima conveniente, é verdadeiro companheiro da dor, e sobrevive a duras penas, pelo sacrifício diário de si. Lutemos, pois: o que nos resta senão lutar?