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Henrique V e a Batalha de Azincourt

20/03/2023
Henrique V e a Batalha de Azincourt | Jornal da Orla

Batalha de Azincourt (ou Agincourt) é uma das mais importantes e impressionantes da história ocidental.

Inserida no contexto da Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França e imortalizada por William Shakespeare num dos seus mais famosos dramas históricos, Henrique V, expõe de modo muito especial as virtudes cardeais da coragem e da fortaleza.

O discurso feito por Henrique V, o rei inglês, pouco antes do enfrentamento, é eloquente e inspirador. Por meio dele, seu exército, então cansado de tantas outras batalhas, animou-se vigorosamente e encarou de igual para igual o inimigo, que estava em número muito maior, com poderosa cavalaria e absolutamente descansado.

Amigo leitor, imagine a cena: o dia principia frio e chuvoso. Espessa névoa baila sobre o campo. O pequeno exército do Rei Henrique V em território inimigo. A incursão pelo norte da França rendeu conquistas, porém a elevadíssimo custo. Mais de um terço havia sido morto e um tanto estava enfraquecido e adoentado.

Um exército de homens-farrapos, sujos, exaustos pelas batalhas e marchas contínuas, famintos, feridos pela saudade de casa e pelas baixas dos amigos de campanha, um exército vitorioso até aquele momento, mas alquebrado em seu orgulho. Este exército vê-se, da noite para o dia, em campo aberto, a planície de Azincourt, diante de um adversário cinco vezes mais numeroso, descansado, em sua própria terra natal, alimentado e bem armado. Olhar para o exército inimigo era o mesmo que olhar para o espectro da morte!

Qualquer um temeria diante de derrota atroz que se mostrava iminente. Qualquer outro rei poderia se deixar tentar pela rendição. Não Henrique V. Ele confiava na justeza de sua causa. Havia deixado rufar e escutado os tambores da guerra em seu coração porque sabia que estava amparado pelo melhor Direito e que o emprego da força era, então, a única forma de materializar a justiça.

Sua vida e a vida de seus compatriotas não seriam dadas em vão. A honra de sua coroa estava em jogo e a própria dignidade do povo inglês, encarnada na figura corajosa e destemida do seu soberano, que era um homem de fé. Henrique V foi um dos últimos reis católicos do país, antes do cisma anglicano.

O rei acreditava piamente que se justa sua causa, a reivindicação do trono da França por força da Lei Sálica, decerto Deus estaria ao seu lado, protegendo seu exército na batalha heroica.

O amor do rei pela causa e sua forte fé eram os dínamos da sua esperança e os tendões dos músculos da sua coragem e fortaleza, exercidos com prudência e temperança.

Diante da presença de tantas virtudes, impossível não seguir adiante e hipotecar ao Céu sua vida.

Pouco antes do combate, Henrique V ouviu um dos seus oficiais lamentar dolorosamente a ausência de combatentes do lado inglês: “dez mil desses homens da Inglaterra que hoje nada estão fazendo!”.

Em resposta, o grande rei profere discurso arrebatador, que desperta a coragem no coração de cada membro do seu exército; discurso que vence o temor e motiva profundamente a todos. O discurso de um verdadeiro líder, de alguém determinado tenazmente a transformar a realidade. Palavras de um homem inspirado por Deus, decerto.

Ei-lo em parte:

“Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo, se estivermos destinados a morrer nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós; e se vivermos, quanto menos formos, maior será para cada um a parte que nos caberá de honra. Deus assim o deseja! Por favor, não desejes um homem a mais. Por Júpiter! Não tenho a cupidez do ouro e pouco me importa que vivam as minhas custas; sinto pouco que outros usem minhas roupas; essas coisas exteriores quase não tem importância em meus desejos; mas, se for pecado cobiçar a honra eu sou a mais pecadora das almas existentes. Não, por minha fé, meu primo, não desejes um homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não desejaria perder tão grande honra, pela melhor das esperança, pois um homem a mais talvez quisesse partilhá-la comigo. Oh! Não anseies por um homem mais! Proclama, antes, através do meu exército, Westmoreland, que pode retirar-se aquele que não tiver coragem para lutar; entreguem-lhe o passaporte e ponham-lhe na bolsa algum dinheiro para que possa viajar; não desejaríamos morrer em companhia de um homem que tivesse medo de acabar como nosso companheiro. Hoje é o dia da festa de São Crispim, quem sobreviver a este dia voltará são e salvo para casa, ficará na ponta dos pés toda vez que falarem no dia de hoje e crescerá só com o nome de São Crispim. Quem sobreviver a este dia e chegar à velhice, anualmente na vigília desta festa, convidará os amigos e dir-lhes-á: “Amanhã é dia de São Crispim.” Então arregaçará as mangas e, ao mostrar as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim. “Os velhos esquecem, entretanto, aquele que de tudo se tiver esquecido, lembrar-se-á, mesmo assim, com satisfação, das proezas que realizou naquele dia .E então, nossos nomes serão tão familiares em suas bocas quanto os nomes de seus parentes; o Rei Henrique, Bedford, Exeter, Warwick, Talbot, Salisbury e Glócester ressuscitarão na lembrança viva e saudável com taças espumantes. Está história será ensinada pelo bom homem ao filho e, desde este dia até o fim do mundo, a festa de São Crispim e São Crispiniano nunca passará sem que esteja associada à nossa recordação, de nosso pequeno exército, de nosso feliz pequeno exército de nosso bando de irmãos; porque, aquele que hoje verter o sangue comigo será meu irmão; por muito vil que seja, está jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que agora permanecem na Inglaterra, deitados no leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui e considerarão de baixo preço a própria nobreza, quando ouvir falar um daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim!

Um brado de guerra, como a soma dos rugidos de mil leões, explodiu e ecoou depois dessas palavras e o exército transformou-se completamente, com os olhos vidrados nos inimigos como os das águias em suas presas!

Depois do discurso, motivados, seus homens partiram para a batalha cruenta que durou quase todo um dia. O verde da planície da batalha de Azincourt foi tingido pelo escarlate do sangue dos milhares de guerreiros que tombaram no dia que pareceu prenúncio do Juízo Final. O dia foi dos ingleses. Do lado francês, a vergonhosa e humilhante derrota.

Milhares e milhares de soldados caíram feridos pelas espadas inimigas. Poucas baixas do lado inglês. Uma vitória quase milagrosa! Comovidos pelo discurso de seu rei, os soldados ingleses multiplicaram suas forças e lutaram como centauros ferozes e enlouquecidos, abrindo aos franceses as portas do pior dos infernos!

Qual o segredo do Rei Henrique V? De onde proveio tanta sabedoria e em hora tão oportuna? Como ele conseguiu motivar suas tropas? Muitas são as respostas e ouso resumi-las aqui: a sinceridade!

As palavras do Rei Henrique V eram palavras sinceras, nascidas de suas entranhas. Não foram palavras vazias ou empoladas, não, longe disso. Expressavam a natureza corajosa de um homem destemido. Palavras, isso é muito importante frisar, acompanhadas de um poderoso testemunho de vida e de fé.

Henrique V não apenas falava, mas também fazia. Não se limitou ao discurso; foi o primeiro a empunhar a espada e entregar-se à batalha, arriscando sua própria vida e protegendo as de seus comandados.

Como em todas as outras batalhas, ele era o mais exausto e um dos mais feridos. Ninguém de boa-fé resiste à força de um testemunho. O testemunho de quem faz é poderoso e cativador.

O Rei tocou o coração do seu exército porque, antes de tudo, uniu fé e razão, confiança e humildade. Não empunhou a espada sem, antes, cravar seus joelhos no chão e elevar o pensamento ao alto. Rezou e lutou.

Enquanto as tropas dormiam, na noite anterior a batalha, o Rei Henrique V guardou vigília. Visitou seus soldados, confortando-os. Verificou pessoalmente os preparativos finais para a batalha. Contemplou as cenas da guerra e, humildemente, prostou-se suplicando a misericordiosa ajuda de Deus.

Numa comovente prece, clamou: “Reveste de aço os corações de meus soldados! Defende-os do medo; tira-lhes a faculdade de contar, se o número de nossos adversários tiver que lhes retirar a coragem!… Hoje, não, meu Deus!”. Logo depois ele pede perdão pelos crimes e pecados de seus antepassados e dos seus próprios e com o coração contrito e humilhado assume compromissos diante de Deus de mudança de vida, finalizando de forma muito bonita, lembrando o glorioso Ricardo Coração-de-leão, bravo cruzado, e prometendo: “Farei mais ainda; mas tudo que puder fazer será pouca coisa, visto que minha penitência deve vir depois de haver implorado perdão para tudo isto!”.

A súplica humilde e penitente do Rei Henrique V propiciou a graça de Deus, fortaleceu seu espírito e permitiu, com seu próprio exemplo, o encorajamento dos seus soldados e a vitória final.

Vitória que foi celebrada de forma respeitosa aos seus mortos e aos dos seus inimigos. Vitória que foi dedicada ao Senhor de todas as Batalhas. Demonstrando sabedoria, Henrique V retirou de si qualquer glória, decretando que seria punido com a morte quem se ufanasse do triunfo daquele dia, pois a ninguém competiria qualquer mérito senão a Deus, que abençoou o corajoso exército inglês naquele dia glorioso.

Determinou o recolhimento dos mortos e o tratamento dos feridos aos cantos solenes e piedosos de Te Deum e Non Nobis. Antes, durante e depois da batalha agiu conscientemente da causa-eficiente de sua força: a fé. Agiu como os verdadeiros líderes agem.

A nobreza obriga, ensina-nos José Ortega y Gasset, e o bravo rei dos Três Leões seguiu fiel sua vocação e obrigou-se a transcender a si mesmo e a conquistar o que parecia impossível. O Céu ajuda os bravos de espírito, os que não se apequenam. Azincourt mostra-nos bem isso.

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