Comportamento

Freio na escalada do ódio

06/04/2023
Freio na escalada do ódio | Jornal da Orla

O massacre ocorrido em uma creche em Blumenau (SC) acendeu o sinal de alerta para o que parece ser uma escalada de violência impulsionada pelo ódio e a loucura. O que parecia uma situação distante do brasileiro, que estava acostumado a saber de ataques em escolas em outros países (principalmente nos Estados), está se tornando cada vez mais frequente.

Pesquisa do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp indica que, em duas décadas, aconteceram 23 ataques em escolas no Brasil, resultando em 36 mortes — 15 dos ataques aconteceram em 2022 e 2023.

Além de nos deixar consternados e indignados, o momento agora é de apurar as circunstâncias deste e outros ataques e identificar as motivações dos assassinos, para evitar que outras explosões de ódio ocorram.

Saúde mental

As características destes ataques em escolas e creches parecem indicar que os assassinos são psicopatas. No entanto, o doutor em Psicologia Timoteo Madaleno Vieira, classificá-los sempre como psicopatas é simplista e incorreto. Após analisar dezenas de estudos internacionais sobre o perfil dos atiradores, ele concluiu que traumas, abusos ou outros fatores sociais podem fazer desenvolver um comportamento agressivo em uma pessoa sem sinais de doença mental.

“Mesmo pessoas biologicamente saudáveis podem desenvolver problemas assim quando submetidas a condições adoecedoras, ou quando inseridas numa cultura doente, pelo fato de que nossas crenças, nosso modo de interpretar e compreender a realidade não é algo imutável, fixo, rígido”, explica. “A ideia de um monstro, um psicopata tresloucado, é muito usada para dar a resposta que procuramos. Isso simplifica as coisas. Explicações assim falsificam a realidade e nos ajudam a evitar a percepção de que podemos ter responsabilidade na expansão desse fenômeno”, diz.

Família e escola

O psicólogo indica dois ambientes que podem potencializar este comportamento destrutivo. “O ambiente familiar tem uma importância muito grande. É o primeiro ambiente onde se espera que as primeiras crenças se estruturem. São as crenças que definem o que a pessoa pensa sobre si mesma, sobre a vida, sobre os outros, sobre a realidade. A falta de limites e de afeto produzem efeitos deletérios muito significativos para o desenvolvimento das crianças, com desdobramentos para a adolescência e a vida adulta”, afirma.

O bullying, muito comum em ambientes escolares também pode servir de gatilho para explosões de fúria e violência. “Ser ridicularizado e agredido é algo impactante. O modo de responder a isso, no entanto, depende de como a vítima interpreta essa realidade. Uma pessoa sofre bullying e reage na hora, outra desenvolve fobia social, outro começa a alimentar desejo de vingança, enquanto outros contam aos pais, pedem ajuda, superam e seguem a vida”, explica Timoteo Vieira. O pesquisador revela que, em grande parte de school shooting (atiradores em escolas) sofreram bullying e não reagiram bem a ele. “Quase sempre há uma distância dos pais ou cuidadores, o que facilita um longo processo de estruturação de crenças que envolvem autopercepção negativa, raiva, desejo de vingança, delírios que partem do desejo de sair da condição de pessoas estranhas, insignificantes e feias para se tornarem mártires que entram para história.

Coordenadora do estudo da Unicamp sobre o tema, a psicóloga Telam Vinha explica que estes agressores acreditam que a sociedade deve para eles, por não terem êxito.  E, como não se sentem ouvidos, as comunidades mórbidas das redes os acolhem”.

Pós-doutora em Psicologia, Luciene Tognetta afirma que as escolas estão entre os alvos preferenciais porque concentram um grande número de pessoas e porque os ataques são seguidos de grande visibilidade.

Afeto

O psicólogo destaca que educadores e pais devem demonstrar afeto, inclusive no acompanhamento da conduta destes jovens, estabelecimento de limites e repreensão pertinente por razões bem definidas. “A punição por comportamentos inadequados são um modo de comunicar afeto. É possível que crianças que nunca são punidas e que não têm limites não se percebam como importantes e amadas”, completa.

Combate ao ódio na internet

Na prática uma verdadeira Terra de Ninguém, a internet é o ambiente propício para a reunião de intolerantes e incentivo de discursos de ódio e violência. Além de disseminar a idolatria a assassinos, o mundo virtual também é usado para reforçar discursos de ódio e, pior, ensinar como realizar ataques.

A advogada Cléo Garcia, que é mestranda em educação pela Unicamp, explica que jogos online e chats de conversa são usados para a disseminação de discursos de ódio. “Os adolescentes encontram reconhecimento, acolhimento, aceitação e estímulo para cometer os atos mais absurdos contra grupos étnicos, identitários e religiosos, ou seja, práticas de racismo, homofobia e misoginia”.

O presidente da SaferNet Brasil (entidade que atua em defesa dos direitos humanos na internet, Thiago Tavares, alerta para a explosão de conteúdos extremistas compartilhados abertamente nas redes sociais, e não apenas na chamada DeepWeb. “Temos visto um recrudescimento da radicalização entre jovens, que são muitas vezes recrutados pelas redes, como por meio de fóruns de games, em plataformas específicas ou em redes sociais como o Twitter. A DeepWeb é usada quando já existe um certo nível de radicalização instaurado”, revela.

As plataformas digitais possuem algoritmos capazes de identificar textos, vídeos e áudios com conteúdo que violam a legislação ou mesmo os seus “Termos e Uso e Diretrizes da Comunidade”. Uma prova disso aconteceu em 2019, quando um atirador matou dezenas de pessoas na Nova Zelândia. O Facebook deletou mais de 1,5 milhão de compartilhamentos do vídeo do ataque. Youtube e Twitter também eliminaram o conteúdo.

No entanto, as redes sociais são acusadas de leniência ou omissão, sob a alegação de que não podem ser mediadoras de conteúdo.

Mestre em Ciência Política pela USP, Guilherme Canela, defende a necessidade de uma regulamentação do mundo digital, o que não significa censura ou ameaça à liberdade de expressão. “Sediadas em países distintos, plataformas como o Facebook, o Twitter e o TikTok se valem de uma série de artimanhas jurídicas para evitar a responsabilização por eventuais problemas em países em que não possuem escritórios instalados”, afirma.

Soluções simples e equivocadas

A colocação de detectores de metais ou mesmo um policial dentro de cada escola são ideias defendidas por quem acredita que há soluções simplistas para problemas complexos. Especialistas indicam que mais efetivo é realizar o acompanhamento do comportamento destes jovens, inclusive e principalmente pela família.

Outra medida é o combate ao bullying, com conscientização dos agressores e acolhimento das vítimas. Isso passa pela capacitação de educadores e orientação de pais. A professora Luciene Togneta, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), defende que as políticas devem ser construídas a partir de estudos liderados pelas universidades e em parceria com profissionais que lidam com o ambiente escolar diariamente. “Não existe algo a curto prazo, e sim a longo prazo e não somente na escola. É todo o sistema de proteção onde a escola está inserida. É preciso que as pessoas que estão no chão da escola pensem em soluções junto com a universidade”, afirma.

O tema é complexo, mas a pior maneira de resolver um problema é acreditar que ele não existe.