
O primeiro chamava-se Carlitos. Não me fazia medo, nem me dava pena. Eu era um menino e ele apenas causava-me estranheza sendo como era. Não sei a razão de ele ter escolhido o meu bairro, a minha rua por onde andava em andrajos com barbas e cabelos longos e sujos, passos lentos, olhar distante e indiferente a tudo, como se nada mais pudesse atrair sua atenção. Somente tinha o olhar de um animal bravio se alguém o molestasse ou o xingasse, por judiação.
Repousava ou dormia encolhido num vão de uma pequena porta de porão, junto ao bar da esquina e ali, às vezes, a molecada acercava-se dele para ouvir histórias de um louco, pois ninguém acreditava nas coisas ditas sobre sua origem de família, de seus estudos, de seu caminho percorrido por profissão.
Não parecia real a história de vida daquele trapo humano. Soava inverídica no precário juízo dos meninos da minha rua.
Jamais mencionou uma única mulher, nem falou de amores ou de seus íntimos sentimentos; calou sua verdade. Carlitos nunca nos disse o que outro maltrapilho como ele, com a mesma imagem em ruínas, nos confidências quando nós, já moços, achegávamos a ele nos arredores do Bar do Atlântico.
Já não me lembro de seu nome, mas tenho no fundo de meus olhos sua fisionomia precocemente envelhecida, figura humana a nos assombrar com toda a ciência fluente de dentro dele, de sua mente fértil de um saber espantoso.
Por que estaria ele ali, sem lar, sem arrimo, e sem um destino capaz de exceder às muretas do Bar do Atlântico, a conversar com estudantes de Direito discutindo as dores do mundo entre uma tulipa de chope ofertado e sua filosofia, com a qual ele tecia a encruzilhada de sua avenida Ana Costa com o Boulevard Saint-Germain de Jean-Paul Sartre?
O homem molambo tinha amado uma mulher, dessas que chegam e partem deixando vazios, saudades, dores e ódios, ou não deixando nada, pois nada trazem e nada levam da frágil identidade de um Carlitos, da individualidade do sábio do Bar do Atlântico, ou da essência de um semelhante, Jean-Marc, que às vezes revejo ao lado de seu cão, enorme e fiel, sentado junto à velha banca de jornais e a acolhedora livraria La Hune, estreitada entre o Café de Flore e o Les Deux Magots, no íntimo do Quartier Latin.
Essas criaturas sobrevivem apenas graças a seu coração mecânico, e a seus pés caminhantes. Mas agonizam na dor da perda, no sentimento brutalizado, no desejo desprezado, no amor traído, na alma em farrapos.
Elas permanecem ali, nas esquinas, nas praças, nos bancos públicos, no vão das portas, e despertam como autômatos, como animais vadios, como seres baldios irreconhecíveis sob a máscara da miséria humana.
Não sei por que eles se deixam perder diante do abandono, e abandonam a si mesmos com a mesma impiedade, a mesma indiferença deixada pelas mulheres que partiram sem olhar para trás.
Elas não os reconhecerão se passarem ali, diante de quem deixaram no meio do caminho: restos de vida, no vazio de ruas repletas de gente.
Difícil entender como a morte, com sua mão abrupta e imediata, às vezes parece poupar a vida de quem sobrevive, mas não existe.
Quem sabe alguns desses deserdados de afeto encontrem ânimo para renascer, de repente, dessa morte em vida, que não vale a pena.
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