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Confiar em Deus como o filho em sua mãe

15/05/2023
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Um testemunho pessoal

A bordo do avião de Lisboa à Funchal, sentei-me ao lado de um jovem casal.

Sua filhinha dormia tranquilamente.

No colo da mãe, nada mais lhe interessava neste mundo, senão o sono inocente.

Estava lá, quieta, tranquila, confortável, protegida.

Lembrei-me da conversa com Padre Francisco, anos atrás, no Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, Campo do Tenente, interior do Paraná.

Padre Francisco é fundador daquele mosteiro, hoje abadia.

Foi membro da Força Aérea dos EUA e lutou na Segunda Grande Guerra Mundial. Sua bravura lhe rendeu medalhas.

Tripulante dos famosos bombardeios B-52, converteu-se de modo fulminante quando sua esquadrilha lançava bombas no interior da Alemanha.

Seu avião foi atingido. Ele, ferido, conseguiu saltar de paraquedas e aterrizou em solo inimigo. Foi preso.

Na enfermaria do campo de prisioneiros, experimentou a misericórdia pelas mãos de uma mãe.

Gentilmente tratado pela enfermeira, sentiu-me como na casa de seus pais e não em campo de prisioneiros, em terra inimiga.

A bondosa enfermeira lhe disse que seu filho estava em campo de batalha e que esperava que se fosse ferido e preso recebesse o mesmo tratamento de alguma colega aliada: o cuidado maternal.

Voltou da guerra condecorado e disposto a ser monge. Fundou mosteiros nos EUA, na Argentina e, como disse antes, no Brasil.

Homem considerado santo em vida por sua comunidade. Passou pelo inferno na terra e fez da vida monástica seu campo de batalhas espirituais e seu paraíso.

Pois bem. Esse grande homem, dono de fé irradiante, ao ver uma família que visitava o mosteiro, chamou-me à parte e disse com seu charmoso sotaque: “Paulo, eu gostaria de confiar em Deus como aquele neném confia em sua mãe”.

Voltei o olhar para a família e vi a cena comovente de um neném com a cabeça encostada no colo da mãe, dormindo pacificamente.

Aí, finalmente, de estalo, entendi as palavras do Senhor: “vinde a mim as criancinhas”.

Aquele homem de fé, herói de guerra, forte caráter, verdadeiramente santo, que dedicou enorme parte da vida à oração incessante, apenas queria conseguir imitar um neném. Nada além, nada aquém. Queria entregar-se plenamente a Deus como o filho à sua mãe.

Profundo, não?

A criança que dormia ao meu lado me fez lembrar daquela outra e do que me disse o bom monge.

Fiquei comovido, sensibilizado e me pus a refletir durante o voo.

Acreditamos em Deus, mas será que realmente confiamos Nele? Confiar não é apenas verbo distinto do crer; é algo maior, bem maior.

No plano da fé, ouso pensar, a confiança é o amadurecimento da crença. Não um amadurecimento qualquer e, sim, de cepa especial e invariavelmente paradoxal.

Confiança é o amadurecimento marcado pelo signo da inocência e carregado de consciente ingenuidade.

Sabemos todos que a fé não prescinde da razão. Muito pelo contrário. Quando forte, dela se vale. Fé e razão retroalimentam-se.

No entanto, essa razão há se ser mergulhada na pureza docemente infantil.

Parece-me, pois, com o samurai que empunha sua espada tanto para combater o inimigo e defender seu senhor, com a braveza dos brutos, como para cortar o caule da peônia, com a mesma delicadeza com que a queixa dedilha a harpa.

O amadurecimento infantil é isso: o guerreiro delicado. A espada que rasga o corpo do inimigo e viabiliza a flor à mulher amada.

Essa pouca mais de hora que passei ao lado da família lisboeta me fez pensar no monge, na entrega do filho à mãe, naquele momento de grande sabedoria em espaço sagrado, nas abençoadas contradições da fé e, ó dor das dores, na minha íntima miséria.

Aprendi tantas coisas boas, fui agraciado com oportunidades fantásticas, interagi e interajo com pessoas magnânimas e, mesmo assim, com tudo isso, continuo a ser “um verme não um homem, o opróbio das nações”, como canta o salmista.

Ao lembrar do Padre Francisco, lembrei-me do que disse seu famoso e santo homônimo: “Senhor, que sou Vós e quem sou eu? Vós sois o Altíssimo, Todo-poderoso, e eu, um miserável vermezinho”.

É isso. Criança deitada no colo da mãe é mais do que uma imagem de candura. Muito mais. É poesia encarnada. É catequese em estático movimento [só os que sabem ser paradoxais, amam tanto os paradoxos].

Essa viagem pelo Oceano Atlântico e em território português foi mais do que um simples traslado de um ponto a outro: foi a aventura interior no tempo e no espaço.

Foi, isto sim, o mergulhar no mar revolto do pobre coração e o confronto pessoal, a batalha íntima e desconfortável, entre o que eu deveria ser e o que eu de fato sou.

E o que sou não me alegra. Não sou um herói de guerra ou um santo. Sou apenas um homem que se esforça na arte do bom e justo, mas que sabe da inglória mediocridade.

Consola-me, porém, a consciência disso e a esperança – ah, essa virtude infalível com ares maternos – de converter a fé em confiança e, com isso, ser um pouco menos indigno do dom da vida.

A menina que dorme nos braços da mãe inspira-me olhar ao Alto e suspirar: Senhor, meu Deus, eu confio que Tu me ensinarás a confiar em Ti, nem que seja à martelada! Dá-me, suplico com joelhos cravados na terra em brasa, a fé dos pequenos, aos quais pertence Teu Reino. Imploro-Te, mesmo. Sozinho, não conseguirei. Amém. Obrigado.

Escrito algum ponto sobre o Oceano Atlântico, em 15 de maio de 2023.

Paulo, um pobre pecador.

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