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A vida feito espuma

12/04/2025 Luiz Guilherme Lima
A vida feito espuma | Jornal da Orla

Às vezes evito chamar o Zezinho (foto) para poupá-lo do trabalho e também para evitar que derrube a bandeja no meio do salão. Mas seus 57 anos servindo chope lhe deram uma destreza que os 80 anos de idade não derrotam o sorriso de quem tem algo para contar, e nunca conta.

Zezinho é referência do meu tempo. Quisera que sua presença fosse minha eternização. Mas meu tempo nem bebe chope. E esse velho e discreto amigo continua servindo as mesas no Heinz, de inspiração alemã e um dos redutos de Santos que há décadas promove a euforia dos que, em grupo, bebericam o chope que rega o leitão à pururuca, o salsichão com batatas ou, agora, o caranguejo que se destroça noite adentro a marteladas.

Zezinho é exemplo da vida que se consome aos goles. Não é único herói neste mundo da sociedade pós-industrial, que acharam de chamar de sociedade do lazer. Talvez melhor seria sociedade do cansaço.

Mas prefiro rotular de sociedade do desejo frustrado. Desejo de consumir o que não se tem. Desejo de ser quem não é. Desejo de viver a vida que se vê no novo mundo da ilusão exibido em posts de influencers milionários.

O erro de Zezinho foi seu tempo, quando não derrubou definitivamente o chope para, nas teclas e selfies, nos enganar e iludir. Zezinho só sabia carregar bandeja, desde quando a fantasia tinha o tamanho de uma tulipa de vidro com espuma. E não arriscaria o sustento da prole.

Para muitos a pandemia foi a falência de sonhos em forma de balcão e mesa. Para outros foi a chance de adentrar no novo botequim de servir riqueza. Rico, para esse velho garçom, era o brilho da espuma que transbordava euforia em muita gente. Prefeitos, deputados, juízes e beberrões, muitos dos quais eu observava nas mesas de tanta euforia e confidências, que talvez expliquem o sorriso matreiro desse homem que viveu para servir.

Zezinho não é único que levou a vida assim. Há milhões de Zezinhos. O caranguejo que ele serve na cerveja é o caranguejo que numa madrugada perdida testemunhei um velho catador retirar da toca, no mangue estuarino, ainda que temendo sacar da toca uma serpente.

Não sei o quanto o trabalho é o sentido da vida. Sei que é, para tantos, sinônimo dela. Ou simplesmente a abnegação para o sustento ou dar sobrevida aos desejos. Irônico pensar que os robôs em breve deixarão esses seres sem serventia.

Zezinho, como tantos, se orgulha dos quatro filhos que criou conduzindo a bandeja, mas chega um dia que o chope perde o sabor e a festejada vida de tantos naquele salão perde a espuma.
Ainda que não se tome chope, como eu, ainda que não se frequente bares, ao contrário de mim, o tempo passa para todos trabalhando e sonhando com o próximo feriado. Ou com a semana de quatro dias, ou ainda com o home office.

A busca de maior conforto é energia na sociedade do cansaço.
Seria diferente se não desejássemos tanto. Ou se não déssemos limites à ousadia de interpretar a vida apenas com o que a natureza nos dá com fartura. Mas, é verdade, a sociedade do lazer não teria tantos bares. E Zezinho não saberia o que fazer no mundo que agora encontrará. Afinal, o que resta de vida a esse homem será sorvido feito chope, antes que só lhe reste a espuma.

Mas talvez Zezinho saiba sim o que fazer: sentar-se na cadeira vermelha para ler a Bíblia, como já faz nas horas de folga, ao lado do seu Fusca 72, que era azul-pavão e ele, que não gosta de azul, mandou pintar de branco feito colarinho de chope. O Fusca, que não tem preço, está sempre coberto com plástico, uma redoma para proteger sua jóia conquistada com tantos goles.