Comportamento

Intolerância e indignação seletiva na rede

21/11/2015
Intolerância e indignação seletiva na rede | Jornal da Orla
*por Marco Santana

“Fui pedir um pão francês e o padeiro me xingou, porque não pedi um pão de Minas”. Engraçadinha num primeiro momento, a piada que circula nas redes sociais escancara uma triste realidade, que fica muito mais evidente quando acontecem tragédias como os atentados terroristas em Paris e a ruptura de uma barragem na cidade mineira de Mariana.


São em momentos de estresse que vêm à tona os sentimentos mais autênticos, como a compaixão, o ódio e a intolerância, manifestados em ambientes virtuais ou mesmo reais. Quem acompanha as redes sociais testemunhou mais uma sucessão de embates, desencadeados após postagens em solidariedade às vítimas na França. O próprio Facebook deu uma ajudinha, ao oferecer a possibilidade de acrescentar a bandeira francesa como plano de fundo à foto do perfil do usuário.

Imediatamente, pipocaram postagens críticas. “E os mortos de Mariana?”, “E as vítimas de latrocínio?”. Logo em seguida, quem se sentiu ofendido contra-atacou. “Eu me solidarizo com quem eu quiser”, “Lamentar as mortes em Paris não significa que eu não lamente as de Minas”. E por aí foi a discussão…
 
Indignação seletiva
A acusação mais frequente é quanto à existência de uma “indignação seletiva”: a pessoa lamentaria Paris, mas faria vistas grossas para Mariana, a violência nas cidades brasileiras, o Petrolão, o Eduardo Cunha…

“Nós nos indignamos a partir de algo que nos afeta. Não vou me sentir afetado por aquilo com o que não me identifico. Logo, toda indignação é seletiva”, explica a filósofa Marcia Tiburi. “Por que nos identificamos mais com a França do que com a África ou mesmo uma das favelas brasileiras? Preferimos olhar para a França? Ou preferem que olhemos para lá?”, questiona.

A resposta parece estar diante de nossos olhos. Levantamento feito pelo site ‘Comunique-se’, especializado em análises da mídia, indica que a TV Globo dedicou, em três dias, 3h54 minutos de sua programação aos atentados em Paris. E, também em três dias, 1h12 à tragédia de Mariana. A Globo é apenas um exemplo do modo de se organizar o conteúdo adotado por outras emissoras, jornais, revistas e sites de notícias.

Este destaque ao que ocorre em “países desenvolvidos” é consequência de um eurocentrismo revigorado, em que a Europa continua como protagonista da cena mundial, em detrimento do que ocorre na América Latina, Ásia e África. Quem tem mais detalhes, por exemplo, da chacina praticada pelo mesmo Estado Islâmico em uma universidade do Quênia e que deixou 147 mortos?

O noticiário divulgado por agências internacionais (da França, Reino Unido, Espanha, Alemanha…) continua dividindo o mundo em “ocidente” e “oriente” da mesma maneira que se fazia na época do Império Romano. Não leva em conta o Meridiano de Greenwich, que verdadeiramente separa o planeta em dois hemisférios. Se considerasse, França, Alemanha e Itália, por exemplo, seriam países “orientais”.

Mas mesmo esta compaixão com o “Primeiro Mundo” é volátil. “Vivemos na mera indignação. O que pensamos sobre uma questão, ou a emoção que sentimos diante de uma injustiça, é logo esquecido. Em um contexto em que estamos ocupados apenas com nossas vidas produtivas e consumistas, não há tempo para pensar em questões coletivas, políticas, éticas, sociais”, argumenta Marcia Tiburi.

“Há, hoje em dia, e talvez sempre tenha havido, causas e injustiças para todos. Isso é uma ironia da democracia. Ao mesmo tempo, pode soar estarrecedor ver pessoas que não se importam com nada. Sobretudo quando essas pessoas vivem em contextos de privilégios. Fácil não se importar conforme os privilégios que se tenha”, afirma a filósofa.
 
Legião de imbecis
A livre circulação de críticas, impropérios, desabafos e preconceitos pela internet é um efeito colateral do desenvolvimento tecnológico. “As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”, sentencia Umberto Eco, intelectual italiano que é mais conhecido por escrever um livro de ficção premiado (“O nome da rosa”) do que pelo seu profundo trabalho de pesquisa em comunicação e semiótica. “Antes, os imbecis falavam apenas em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Normalmente, eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”, completa. “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”, acrescentou.
 
Opinião e patrulhamento
E é justamente esta possibilidade de “opinar”, tal qual um polemista profissional, que faz as redes sociais serem inundadas por todo tipo de manifestação. Borbulham por todos os cantos as críticas ao comportamento alheio, aos valores do outro, a indicação do que seria “o certo”. 

“A internet facilita a grosseria, reduz o discurso à gritaria, enterra a possibilidade do diálogo,  que já não era fácil por outros meios”, argumenta Marcia Tiburi. 

O fim do diálogo a que ela se refere é uma consequência do patrulhamento das opiniões, que leva, também, ao fim do sentido da própria solidariedade. “O patrulhador define o que é o certo e o errado e julga antes de entender o posicionamento do outro”, explica.
 
Debate produtivo
Mas existe possibilidade de se confrontar as diferenças e, ainda assim, conseguir um resultado produtivo? Sim, desde que haja respeito com o interlocutor. “Devemos lutar e exercitar o direito à expressão. Esse direito não está livre do dever do respeito e do reconhecimento dos direitos humanos e dos direitos dos outros de um modo geral”, afirma.