Mais do que saudosos, os leitores ficam apreensivos quando os mestres consagrados embarcam em hiatos de silêncio; afinal, dos grandes queremos sempre mais livros. Desde 2004 que Nélida Piñon, verdadeiro monumento literário brasileiro, não entregava um romance ao público. A espera findou em 2020 com a publicação deste incrível Um dia chegarei a Sagres.
Para escrever esta odisseia lusitana reduzida na figura de um homem, Nélida passou um par de anos em Portugal para estabelecer suas pesquisas e fortalecer suas inspirações. E fê-lo muito bem. O livro traz a estória de Mateus, um camponês do profundo Portugal que cresce sob a dedicada tutela de seu avô, mas sufocado pelo obscuro segredo que ronda sua desterrada mãe e seu desconhecido pai. “No mundo só existem nós dois”, dizia o avô ao neto, num jeito muito próprio de explicar que só existe amor entre eles, porque o mundo só oferecerá dor e miséria.
É quando o avô morre que Mateus resolve abandonar o arado e marchar para Sagres. Trata-se de uma obsessão antiga do rapaz: fascinado pelas estórias grandiosas dos heróis descobridores marítimos, quer encontrar o túmulo do Infante D. Henrique naquela cidade. Inicia-se aí a epopeia lusa de Mateus, que atravessa Portugal como “uma alma penada sobre quem pesava uma sentença injusta”.
Nélida cuida como ninguém da eterna busca de um homem miserável por seu lugar no mundo. Os pensamentos de Mateus e suas interações com o mundo têm uma profundidade singular. Não é nada fácil escrever assim. Nélida Piñon dá aula.
Motivos para ler:
1– Nélida Piñon é referência nas letras brasileiras. Multipremiada no Brasil (Jabuti, Mário de Andrade, Golfinho de Ouro) e no mundo (Juan Rulfo – México; Jorge Isaacs – Colômbia; Mistral – Chile; Príncipe das Astúrias – Espanha), honrou a Academia Brasileira de Letras ao ser nela empossada como imortal, sendo a primeira mulher a presidir a casa. É catedrática da Universidade de Miami e professora-visitante em Harvard, Columbia e Georgetown. Recebeu títulos honoris causa de diversas universidades estrangeiras. Um currículo espetacular, uma escritora genial;
2– Há quem saiba contar estórias. Nélida é dessas. A expansão de consciência que a escritora promove sobre cada um dos personagens é algo espantoso. O destaque especial fica para a única ternura que o sofrido Mateus experimenta na sua vida: a proteção verdadeira e sábia do avô. É por ele, seu querido avô, que Mateus guarda todas as memórias, porque “elas valem o mundo”;
3– Leia mulheres!
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