Apesar de evidenciar a podridão humana e seu negacionismo, o longa caminha em uma linha tênue entre apontar o dedo para o superficial (mais concentrado nos EUA) e ele mesmo ser superficial em seu humor negro
O clássico Dr. Fantástico, dirigido pelo inigualável Stanley Kubrick, foi o filme que me veio à mente ao assistir este Não Olhe Para Cima. Me veio à mente não pela qualidade e complexidade, pois está muito longe do clássico de 1970, mas pela abordagem satírica que, em mãos talentosas, sempre representou uma forma de expor falhas e absurdos da sociedade que vivemos, dissecando nossas fragilidades individuais, comunitárias e governamentais. O filme, que é uma crítica ácida ao negacionismo e a imprensa sensacionalista, por vezes consegue fazer rir, mas mostra-se extremamente incapaz de competir com a realidade pós pandemia, o que atrapalha sua proposta reflexiva.
Não Olhe Para Cima conta a história de Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), dois astrônomos que fazem uma descoberta surpreendente de um cometa orbitando dentro do sistema solar que está em rota de colisão direta com a Terra. Com a ajuda do doutor Oglethorpe (Rob Morgan), Kate e Randall embarcam em um tour pela mídia que os leva ao escritório da Presidente Orlean (Meryl Streep) e de seu filho, Jason (Jonah Hill). Com apenas seis meses até o cometa fazer o impacto, gerenciar o ciclo de notícias de 24 horas e ganhar a atenção do público obcecado pelas mídias sociais antes que seja tarde demais se mostra chocantemente cômico. Terceira empreitada de Adam McKay no gênero das comédias políticas (assistam dele o excelente A Grande Aposta), Não Olhe Para Cima mantém as mesmas características de filmes anteriores do diretor: montagem dinâmica e que, com frequência interrompe cenas buscando o humor e no choque de certos personagens, além de sua marca registrada de jogar informações que vem na tela através de letreiros ou gráficos. Aliás, posso dizer que aqui ele passa um pouco do ponto.
O roteiro, também escrito pelo diretor, que em seus longas anteriores conseguiu transformar ideias complexas em situações cômicas simplistas, encontra aqui o ápice do absurdo ao emular a realidade com exageros que são assustadoramente autênticos com um tom leve em seu ato inicial, mas à medida que a premissa avança em seu propósito maluco, a experiência ganha uma dimensão e abordagem mais trágica. A narrativa é basicamente um vai e vem de blocos e situações que se alimentam da estupidez um do outro, passando pela administração inspirada em Donald Trump, com Meryl Streep em uma versão feminina e caricata do ex-presidente, indo também pela clara paródia a mídia americana e por último, tirando sarro de multimilionários egoístas e egocêntricos com uma atuação do ator Mark Rylance que combina elementos de Steve Jobs e Elon Musk.
Em contrapartida, Não Olhe Para Cima se sai bem melhor ao explorar a frustração dos cientistas que descobrem o meteoro, ambos vividos por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, diante da paralisia das autoridades que se recusam a agir com a firmeza necessária para lidar com o problema. DiCaprio tem um excelente momento de explosão com um discurso raivoso sobre a inércia do governo que pode colocá-lo na briga por premiações este ano, apesar de eu achar que não mereça.
Não Olhe Para Cima chega a ser perturbador em seu humor negro absurdo que evidência bastante a podridão humana e o negacionismo (em tempos que existe a recusa não apenas da vacina, mas até mesmo de usar uma máscara) mas que também caminha em uma linha tênue entre apontar o dedo para o superficial (mais concentrado nos EUA) e ele mesmo ser superficial em seu humor negro.
Curiosidade: O diretor Adam McKay disse que escreveu o roteiro do filme em parceria com David Sikora, antes do início da pandemia, e ficou surpreso ao perceber o enredo se tornar realidade.
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