Sala de Ideias

O violão na Globonews não soa bem para as vítimas do sistema tributário

13/07/2023
Reprodução/Globonews

Guilherme Prado

O Novo Teto e a “Reforma Tributária” foram as duas reformas mobilizadas pelo governo Lula até agora. Ambas não são progressivas – mantém benesses orçamentárias para os mais ricos e austeridade para os mais pobres, foram feitas a toque de caixa, de cima para baixo, sem audiências públicas ou participação das entidades dos trabalhadores como movimentos e sindicatos, e com um despejar imenso de recursos para parlamentares da direita fisiológica. Nesta última reforma, R$8,65 bilhões foram liberados para a aprovação de medidas que sequer têm grande conexão com o discurso de campanha responsável pela vitória histórica contra o Bolsonarismo. O que ambas também têm em comum, é que produziram um ambiente muito complicado para aqueles que têm um posicionamento mais crítico ao apoiar o governo com uma perspectiva à esquerda.

Sem esgotar o tema, queremos aqui levantar os limitados prós e as grandes contradições e ameaças da reforma que não foi exatamente “tributária” no sentido amplo. O que vimos foi uma centralização de tributos no último ponto da cadeia, o mais cego e que mais impacta a classe média e os mais pobres: o consumo. Será criado um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) composto por dois tipos de impostos, o Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Os limitados prós:

A centralização dos impostos do consumo parte sim de princípios importantes e essenciais. O emaranhado de impostos do sistema brasileiro complica as empresas pequenas, médias e grandes, e causa grandes confusões e litígios. Centralizar impostos, nesse sentido, é uma boa premissa. Além disso, a cobrança de impostos no lugar onde mercadorias e serviços são consumidos pode diminuir as desigualdades entre estados e municípios. Com impostos cobrados na origem, entes federativos mais ricos e industrializados tendem a arrecadar mais, ampliando a desigualdade.

Arrecadar no destino significa coletar impostos onde as pessoas usam serviços públicos, o que também é mais justo. Porém, a reforma não será vista por completo por muitos brasileiros já que tem um risível prazo até 2078 para ser completada. Ou seja, 55 anos.

Além disso, o que saiu de caráter progressivo com considerável propaganda foi principalmente a isenção da cesta básica, cobrança do IPVA para jatinhos e iates e o cashback para os mais pobres. Porém, todas essas partes foram frágeis, pouco detalhadas, genéricas e só serão confirmadas com futuras regulamentações, que podem ou não vir. Um caso famoso disso foi o Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF), constitucional e jamais regulamentado.

Cesta Básica – Foi colocada a previsão de isenção de impostos para a cesta básica, algo que já era vigente mas não constitucional. Todavia, enquanto não estão especificados quais seriam os alimentos isentos, “insumos agropecuários”, que muito provavelmente serão traduzidos em agrotóxicos, já estão assegurados com isenção.

IPVA para iates e jatinhos – Na questão da cobrança de IPVA para jatinhos e iates, o mesmo vale, há previsão mas não há qualquer garantia de regulamentação. Porém, aqui o caso é pior, o texto abre a brecha para isenção do IPVA se o jatinho ou o iate estiver em nome de uma empresa de transporte. Manobra muito simples para os ultra-ricos. O texto seria mais comprometido se levantasse tal cobrança para “veículos de luxo” em geral.

Cashback – O cashback, americanização desnecessária para o termo devolução de imposto também está previsto, mas sem maiores especificações sobre quais as faixas de renda ou tamanho dos valores que podem ser ressarcidos. Isso nos faz desconfiar de que a arrecadação que o governo necessitará para fazer funcionar seu Novo Teto de Gastos, poderá vir desses impostos cegos sobre o consumo. E há sérios indícios de aumento da carga tributária para os 99%, conforme veremos na sequência.

Os graves contras:

A bagunça do sistema tributário, porém, não é a origem da desigualdade. Mas foi uma forma de escondê-la. Talvez essa reforma acabe por torná-la mais clara, já que provavelmente teremos uma alta alíquota de imposto no consumo. O que levanta dúvida é se esse fato vai gerar uma revolta à esquerda contra o sistema tributário, ou empoderar os anarcocapitalistas e liberais neofascistas anti-impostos.

Desigualdade Tributária – a proposta reunirá no CBS o IPI, PIS e COFINS extinguindo-os. Já no IBS o ICMS e o ISS serão fundidos e eliminados. Ao que se ventila, o IVA do Brasil poderá estar entre os maiores do mundo, com uma alíquota de 25% ou mais, perto da Hungria que com 27% possui a maior taxa. Isso revela duas coisas gravíssimas. A primeira é que não foi feito nenhum estudo sobre o impacto dessas mudanças, o movimento irresponsável e a toque de caixa pode colocar em risco os maiores gastos sociais do Brasil, como saúde, educação e Previdência.

O outro ponto é que, ao que tudo indica, as alíquotas de todos os impostos devem ser mesmo simplesmente somadas, chegando aos falados cerca de 25%. Somando as alíquotas mínimas ou mais comuns de todos os impostos, chegamos em algo perto disso: PIS (0,65%), Cofins (3%), IPI (5%)¹ , ICMS (17%)² e ISS (2%). Aí mora um dos maiores problemas da reforma e o indício de aumento de carga para os 99%: quando a “Dona Maria” trabalhadora informal ou “seu João” celetista hoje compram um bem ou serviço, são cobrados o ICMS (imposto do estado) ou ISS (imposto do município). Geralmente há quase sempre ICMS no que compramos, mas no setor final muitas vezes não há ISS. Na reforma os dois serão agregados e cobrados no consumo na maioria das vezes, salvo as exceções ainda a se regulamentar. Sem garantia de que isso retornará em proporção para o mais pobre e muito menos a classe média, temos na verdade uma piora do sistema. Antes que se levante a experiência do “cashback” de Eduardo Leite sondada na reforma, ela não chega a R$40 de ressarcimento e só atinge as pessoas muito pobres registradas no CadÚnico.

1- Muitos produtos são isentos mas a maior parte deles tem uma alíquota nesta casa ou abaixo dela na Tabela de Incidência do IPI.
2- Alíquota média da maioria dos estados.

Agronegócio e Imposto Seletivo – enquanto nossa classe espera confirmações, o agro já tem garantia de isenção de impostos em seus insumos agropecuários (agrotóxicos?) e em seus veículos, inclusive nos aviões que dispersam veneno. Sim, o suposto IPVA nos ricos poupa o agro. Isso torna risível a proposta de imposto seletivo (que aliás poupa o consumo de luxo) que serviria para sobretaxar produtos e atividades danosas à saúde e à natureza. A mineração e o agronegócio saíram ilesos, justamente os segmentos com maior contribuição para a destruição ambiental e emissões de gases no país. Além disso, “dona Maria” e “seu João” pagarão mais impostos trabalhando pelo Brasil, o agronegócio seguirá sem pagar impostos de exportação (privilégio da Lei Kandir) mesmo destruindo-o.

Sistema financeiro beneficiado em detrimento da Previdência e INSS – sem a solidariedade em forma de política pública do INSS, o Brasil seria ainda mais desigual e brutal. Multiplicando os 21 milhões de beneficiários do Bolsa Família e 31 milhões da Previdência por 3 (o tamanho de uma família pequena), temos 156 milhões de pessoas beneficiárias do sistema de seguridade social, – 72% da população brasileira depende do adequado financiamento do INSS.

As contribuições são impostos com destinação e que retornam em benefícios, como a aposentadoria. PIS e Cofins, que carregam bem claramente em seus nomes a sua finalidade e após muitos litígios constituem a maior fonte de financiamento para o INSS (que também inclui o SUS e assistência social!), serão diluídos no CBS. Mas não se sabe o quanto este irá arrecadar, nem como financiará os benefícios do sistema. Além disso, sem qualquer discussão, as desvinculações de 30% dos recursos destinados à saúde, educação, INSS e outros gastos sociais foram garantidos de antemão no texto. Novamente o sistema de dívida foi garantido enquanto nossos direitos foram ameaçados.

Conselho federativo – essa proposta é a mais obscura. Tal conselho consumirá recursos, poderá reter e distribuir impostos (IBS) com critérios por ele estipulados e terá representantes eleitos politicamente. Além de perigosíssimo, isso deve diminuir a autonomia dos governadores, sendo um claro ataque ao pacto federativo. A medida parece dificultar uma das melhores premissas da Reforma,- a igualdade entre estados -, já que nesta “agência” os estados mais populosos terão maior peso.

O centro da reforma parece ter sido dar dinâmica à economia com uma “simplificação” e centralização tributária, ainda que gerando um imposto mais alto que a média de 19% da OCDE. Com algum custo e tempo, isso deve facilitar os processos das empresas. E sim, há muitas empresas familiares a serem beneficiadas por isso. Mas essa reforma tem como pano de fundo o interesse de setores do agronegócio, capital financeiro e transnacionais que também buscam resolver o problema fiscal e de arrecadação combalidos de uma sociedade mergulhada na informalidade. Diante da baixa capacidade contributiva também pelos impostos sobre a folha de pagamentos isentados, causando mais de R$ 9,3 bilhões de perdas, a reforma parece ser interessante para tais setores por focar no consumo, excluindo a renda dos ricos.

A alta alíquota ventilada não será cobrada do sistema financeiro, mas a reforma garantiu desvios dos impostos vinculados aos gastos sociais para o sistema de dívida pública, isentou o agronegócio, a mineração e o consumo de luxo, ameaça o INSS, não garante que isenções na cesta básica e IPVA em veículos de luxo sejam efetivados de imediato e não tocou na renda e patrimônio dos mais ricos. Isso foi prometido para ser tocado adiante, já depois que o problema tributário dos mais ricos foi solucionado. O que está dado é que os impostos no consumo, ao que tudo indica, aumentarão para “Dona Maria” e “Seu João”. A maior distorção da reforma, porém, é em relação ao discurso da eleição: o rico está no orçamento e o pobre segue no “imposto de renda do consumo”.

*Guilherme Prado é doutorando em Economia Política mundial, coordenador da Rede Livres e dirigente do PSOL.

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete a linha editorial e ideológica do Jornal da Orla. O jornal não se responsabiliza pelas colunas publicadas neste espaço.

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