Sala de Ideias

Lula II, o melhor governo que já tivemos, seria inviável com o arcabouço de Haddad

24/04/2023
Valter Campanato/Agência Brasil

Guilherme Prado

Há vários tetos na proposta de Novo Arcabouço Fiscal (NAF) do Ministro da Fazenda Fernando Haddad, mas talvez o pior deles seja aquele que limitará a capacidade do presidente Lula cumprir suas promessas de campanha e que, portanto, também se tornará um teto para sua popularidade.

Antes de atacar o problema, é preciso lembrar antes que o início desse governo foi de notável e aliviadora reconstrução: a PEC da transição gerou capacidade do Estado gastar para recuperar setores destruídos da sociedade. Foram retomadas políticas de segurança alimentar, ciência, salário mínimo, dentre outras, e Ministérios para representar setores oprimidos da sociedade foram criados.

Algumas contradições, porém, começaram a surgir sem pressão aparente: Haddad postergou o aumento do salário mínimo somente para maio, justificando a atitude por conta de um aumento do gasto público em benefícios. Porém, o mesmo anunciou em 12 de janeiro que economizaria R$ 50 bilhões dos R$ 231 bilhões que a PEC de transição já o havia liberado para gastar. Ou seja, o Ministro fez economia com recursos que poderiam ir para melhorar as condições de vida da população e para aquecer a economia. Ao invés, tornou-os sinal de bom comportamento, -e lucro-, para o mercado financeiro. Mas as contradições aumentariam.

Novo Arcabouço Fiscal: um alívio, uma preocupação.

No último dia 19 de março o governo entregaria ao Congresso a proposta completa do NAF. Como um alívio, ela revelaria a pá de cal ao teto de gastos antes impostos ao Brasil, a volta da capacidade de o Estado investir na economia e até um piso mínimo sob onde o gasto público não poderia ficar. Porém isso por si só não faz a proposta boa, já que seus engessamentos, travas, a volta do superávit primário como ponto central e a colocação do investimento privado como motor da economia, tornarão impossíveis acertos anteriores que o PT realizou enquanto governo.

Não cabe aqui dizer o quanto as ideias presentes no NAF são coisas que nem os conservadores de direita mundo afora defendem mais: especialmente a defesa de Superávit Primário, a ideia fiscalista e criminalizante sobre os déficits públicos, e a noção de que cortes nas despesas são bons para o crescimento. Seria levantar um debate longo e desconfortável especialmente para mim, um Ecossocialista que entende a ideia de crescimento contínuo da economia algo falido e um problema para a necessária transição ecológica global. Devemos nos ater apenas a uma lamentável realidade, o melhor governo que tivemos após a redemocratização, o Lula II; recordista de geração de empregos, investimento público, consumo das famílias trabalhadoras e até em popularidade de um estadista (87% de aprovação); será impossível de ser repetido com o NAF.

Para simplificar, há pelo menos três variantes que tornarão impossível a repetição da experiência petista (três tetos na verdade): 1) os bancos públicos submetidos ao teto de gastos, 2) a possibilidade de o Estado gastar apenas 70% da variação da receita arrecadada quando alcançar superávit e 50% quando não o alcançar, e 3) o teto geral de aumento de 2,5% no gasto de um ano para outro. Tal política com o centro no mercado financeiro e investimento privado, sepulta novamente não só o velho John Maynard Keynes, mas o neodesenvolvimentismo de Lula praticado principalmente entre 2007-2010.

Adeus Lula II!
Lula ficou famoso com a sua máxima de que o Tsunami da crise global de 2008 se tornaria uma “marolinha” aqui no Brasil. E de fato foi: a política de ativação do BNDES e do investimento público fizeram o Brasil atingir a maior taxa de crescimento do período: 7,5% em 2010. Isso não seria possível sem a atuação do BNDES, fortemente capitalizado pelo nosso tesouro, algo que não poderá acontecer já que os bancos públicos estão dentro do teto de Haddad.

Desembolsos do BNDES
Volume anual em bilhões de reais

Fonte: G1

Além disso, o teto geral de 2,5% faz o NAF ficar à direita do tucano Fernando Henrique Cardoso na questão do gasto público. No FHC II a despesa total ficou na casa de 4,50% de crescimento. Tudo fica pior quando comparamos com os governos Lula: entre 2003-2010 o gasto público ficou na casa de 5,50%. Mais grave ainda é se analisarmos somente o Lula II- o mais anticíclico e keynesiano de seus governos, onde esse aumento foi na casa de 8,3% em meio a um cenário turbulento internacionalmente.

Não estamos aqui defendendo o gasto pelo gasto, estamos dizendo que o investimento público ativa a economia, aquecendo-a e garantindo capacidade de arrecadação inclusive, o que torna o governo mais capaz de fazer políticas sociais como prometido em campanha. Algo aliás essencial para extirpar o vírus do Neofascismo do tabuleiro político.

Mas, diante das incertezas é que vemos a incapacidade do NAF contornar situações externas difíceis, já que é pró-cíclico e um atentado à memória do velho Keynes. Se o governo não atingir o superávit buscado em um ano, terá que gastar ainda menos no ano posterior (somente 50%¨da variação da receita), prolongado a crise. Isso teria nos colocado na sarjeta em 2009-2010. Naquela situação Lula fez o contrário: o país teve uma queda de 0,2% do PIB mas manteve teus gastos públicos muito acima de 2,5% (cerca de 8% em 2009 e 5,5% em 2010). O resultado foi aquilo que lembramos, a febre Brasil invadiu o mundo e Lula se colocou como um dos maiores presidentes do Terceiro Mundo, sendo capaz de eleger Dilma Rousseff, um tanto desconhecida na época.

O que virá se frustrarmos 60 milhões de votos?

A política econômica proposta por Haddad está muito mais próxima do Dilma II que de Lula II, governo que estava no imaginário da população que foi às urnas desejando emprego, saúde, educação e felicidade. Mas o fato é que temos uma situação internacional nada boa, economia derrapante, uma extrema direita à espreita para dizer que seus números econômicos no ano passado foram melhores (e só foram por conta de que Bolsonaro gastou mais para se reeleger corruptamente e não porque tem compromisso social), e um relógio correndo contra o governo. O povo, graças a seu esforço político e a memória afetiva do Lula II, respira aliviado sem Bolsonaro, mas olha para o futuro.

Para sair do calabouço que nos enfiamos desde Joaquim Levy em 2015, precisamos de algo melhor que o arcabouço liberal de Haddad. Não podemos esquecer que Lula prometeu que queria voltar para fazer ainda mais do que já tinha feito, e não menos.

*Guilherme Prado é mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, roteirista e apresentador do podcast Vozes Livres, coordenador da Livres Coop e militante do PSOL Santos.

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