Sala de Ideias

Dirceu Fernandes Lopes, meu Mestre

23/12/2021
Dirceu Fernandes Lopes, meu Mestre | Jornal da Orla

 Professor de jornalismo formou e forjou gerações de profissionais

Era a terceira vez que eu entregava a lauda com vinte linhas, setenta toques datilográficos em cada uma, para o professor examinar. Era a segunda folha que eu apresentava, pois a primeira versão virou bolinha de papel e foi parar na lata do lixo —tinha sido tão reescrita, sobreescrita, emendada, rasurada, que qualquer outra alteração tornaria o texto ilegível. Na época da máquina de escrever, se metia XXX sobre o que se queria eliminar e datilografava no espaço acima.

O professor terminou a leitura atenta, me olhou por cima dos óculos equilibrados na ponta da nariz e, depois de um breve silêncio, rasgou a folha de papel em mil pedaços. Diante do aluno atônito, não deu tempo para indignação:

—Senta lá e começa tudo de novo. Mais fácil escrever tudo do zero. As informações estão todas aí mas você tem que organizar melhor a ordem delas. O que é o mais importante aí?

— Que o governo cortou as verbas da obra…

—Não! — interrompeu, emendando:

—As pessoas…

Entre todos os bons professores que tive na Faculdade de Comunicação da UniSantos, a Facos, para mim o melhor e mais marcante foi Dirceu Fernandes Lopes. O jeito durão, estilo “sargento do Exército”, era disfarce para a alma meiga, solidária e divertida que ajudou a formar e moldar a capacidade profissional e o caráter de uma legião de jornalistas —gente boa que está por aí, se destacando e realizando trabalhos brilhantes e importantíssimos. Sempre que vejo, leio ou ouço uma coisa muito boa de algum colega, não tenho dúvidas em cravar: “Olhaí, isso é por causa das aulas do Dirceu”.

Devo ao Dirceu meu primeiro emprego como jornalista na Baixada Santista. Ainda no segundo ano da faculdade, cansado de procurar uma vaga após inúmeras respostas negativas, certo dia fui dar uma caminhada na praia. E, assim que chego, esbarro justamente com Dirceu. Senti um certo constrangimento na hora, temendo que ele achasse que eu era um “cabeça fresca” (como designava quem cursava a faculdade mas não queria nada com nada). Ele percebeu e, no tom de voz mais afetivo que já ouvi, perguntou:

— E aí, rapaz? Não está trabalhando?

Relatei que já tinha procurado emprego ou estágio em todos os jornais, rádios e TVs possíveis  e imagináveis, sem sucesso. Dirceu perguntou:

— Você já foi no Jornal Vicentino?

Eu nem sabia que existia jornal em São Vicente.

—Vai lá. Procura o Fernando, um baixinho. Fala que fui eu que mandei você ir.

— Legal! Vou lá amanhã, logo cedo —respondi, já que era por volta de 2 tarde.

—Não! Vai lá agora! Você tem alguma coisa mais importante que isso para fazer agora?

Aquelas palavras me deram um estalo. Foi um ensinamento que levo e pratico desde então: identificar o que precisa ser resolvido e ir para cima, com entusiasmo, sem corpo mole. Séculos antes de apareceram os gurus motivacionais, em seus conceitos gourmetizados (“procrastinação”, “resiliência”, blábláblaá) Dirceu Fernandes Lopes já era coach-raiz!

Fui pra casa, tomei um banho, depois um ônibus e pouco mais de uma hora já estava na Redação do Jornal Vicentino, falando com o editor, Fernando Lopes — que também foi muito importante na minha formação profissional e se tornou um grande amigo.

Nesta época, aos 19 anos, eu tinha cabelo comprido até o meio das costas e usava roupas esquisitas. Fernando franziu a sobrancelha direita, me olhou de cima a baixo e sentenciou:

—Se é indicação do Dirceu você deve ser bom. Volta amanhã para fazer um teste, porque o dono do jornal vai perguntar se eu te testei.

Fiz o teste, comecei no dia seguinte e nunca mais fiquei desempregado. Fui passando de jornal em jornal, sem nunca ficar um dia sem trabalho. É apenas uma das coisas que devo ao Dirceu.

Aprendi muito, muito, muito com o Dirceu. Nas aulas, em mesas de bar (talvez mais do que em classe) e nas longas caminhadas de volta para casa —por sorte, o professor morava na rua atrás da minha. “Olhar o mundo com os olhos de ver”, “Não ter espinha de borracha”, “Pau na máquina!” eram algumas de suas frases mágicas que, como fagulhas, inflamavam o espírito de quem quer ser jornalista e mudar o mundo (ou ao menos tentar).

Dirceu me fez ler “Ilusões Perdidas”, de Honoré Du Balzac, conhecer regiões periféricas da cidade que eu nem sabia que existiam, ter uma visão humanista da vida.

Como editor do Jornal da Orla, admiti uma porção de estagiários indicados por Dirceu. Mais do que um certificado de qualidade conferido pelo mestre (eu lembrava do frase do Fernando: “Se é indicação do Dirceu, deve ser bom”), era minha maneira de retribuir a oportunidade aberta por ele, anos antes. E todos, sem exceção, realmente eram bons. Passaram pelo jornal e depois seguiram outras trajetórias vitoriosas.

Depois de formado, fui algumas vezes encontrar com Dirceu na Escola de Comunicação e Artes (ECA), na USP, onde era mais venerado pelos alunos do que na Facos. Levou-me para almoçar no Clube dos Professores da USP, onde era nítido o respeito que tinha dos mestres e doutores de outras faculdades.

Às vezes, me fazia visitas inesperadas, na redação. Abria a volumosa e inseparável mochila e despejava exemplares dos jornais laboratoriais, do Jornal da USP e outros títulos improváveis.

—Leia este artigo, está muito bom — recomendava.

Dirceu gostava de andar. Sempre que o encontrava na rua, eu fazia questão de dar carona para qual fosse o destino dele, mesmo que implicasse mudar minha rota ou me atrasar para meu compromisso. Mais uma pequena gratidão ao mestre.

Este texto vem atrasado. Dirceu merecia ser homenageado em vida. Mas minha gratidão e os ensinamentos do grande mestre são eternos.