O brasileiro comum acompanha as barbaridades do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fica estarrecido, ri e, em alguns casos, até apóia o que ele fala ou faz. Mas a maioria não consegue fazer a conexão entre os destemperos do líder da nação mais poderosa do mundo e o cotidiano de cada um de nós no Brasil. Estudioso em regimes autoritários contemporâneos, o pesquisador e escritor Alexandre Gossn alerta que as consequências são muitas e impactantes.
Mestre em Direito e doutorando pela Universidade de Coimbra, ele alerta que o comportamento de Trump pode estimular pessoas intolerantes no Brasil e certamente vai influenciar o processo eleitoral do ano que vem.
Muitas pessoas estão surpresas com as decisões de Donald Trump, mas, na prática, ele está cumprindo o que prometeu durante a campanha eleitoral… Ou indo além?
Ele está realmente cumprindo o que prometeu. Não dá para dizer que não fomos avisados. Trump tem uma forma de se comunicar que, para seus admiradores, é a de um político autêntico. Para os seus opositores, ele é alguém que quebra todos os protocolos e regras institucionais. Mas não dá para dizer que ele não avisou.
Desde o início, ele deixou claro que sua política econômica envolveria erguer barreiras tarifárias, ou seja, criar uma guerra comercial com os países que ele considera beneficiados na balança comercial. Algumas tarifas que ele elevou realmente incidiam sobre setores de países que praticavam medidas sem reciprocidade aos Estados Unidos.
Mas isso não é feito por bondade. Os Estados Unidos aceitavam esse tipo de prática comercial porque entendiam que seu mercado interno precisava de matérias-primas vindas de fora, pois seus produtores não conseguiam competir em qualidade ou custo.
Por outro lado, não dá para dizer que Trump não surpreende. Muitos eleitores nos Estados Unidos, assim como na Argentina, votaram com o fígado, sem refletir sobre o que significaria a concretização dessas medidas. Alguns cidadãos que se incomodam com políticas identitárias, por exemplo, podem ter votado nele sem prever que isso também teria impactos na imigração.
Então, não são bravatas…
É preciso separar os aspectos. Trump está cumprindo o que prometeu, mas também tem um lado bravateiro. Como um articulista do New York Times observou, Trump parece não gostar de governar de fato, mas sim de fazer anúncios impactantes. Ele declara algo, depois recua, volta atrás novamente, e assim sucessivamente.
Um exemplo claro disso é sua promessa de deportação em massa. Durante a campanha, ele afirmou que expulsaria 2 milhões de pessoas em quatro anos, o que exigiria uma média de 500 mil deportações por ano, cerca de 40 mil por mês. No entanto, os dados oficiais mostram que a média mensal de deportações no governo anterior era de 55 mil, enquanto nos primeiros meses da gestão Trump, o número caiu para 35 mil. Ou seja, na prática, ele deportou menos do que seu antecessor. Isso demonstra que boa parte de sua retórica é bravata.
Essas decisões xenófobas, a discriminação contra minorias e imigrantes, podem estimular comportamentos semelhantes aqui no Brasil, como preconceito contra imigrantes e nordestinos?
Sem dúvida. Os Estados Unidos, independentemente de suas práticas serem positivas ou negativas, influenciam o mundo inteiro. Quando, por exemplo, houve o movimento pelos direitos civis contra o apartheid nos EUA, essa luta se refletiu em outros países. O mesmo vale para tendências negativas.
No Brasil, já existe um preconceito profundamente enraizado contra nordestinos. É muito provável que discursos como os de Trump incentivem esse tipo de comportamento aqui também. Além disso, não podemos esquecer que teremos eleições para presidente, governador, deputado e senador no ano que vem. Trump está alinhado com diversos grupos explicitamente supremacistas, que defendem a superioridade de determinadas etnias, religiões e culturas. Certamente, parte da extrema-direita brasileira tentará imitar ou se beneficiar desse discurso.
No governo passado, um dos assessores mais importantes, Felipe Martins, foi investigado por fazer um gesto supremacista em público. Esse gesto, criado nos Estados Unidos, mostra como influências externas podem ser incorporadas ao cenário político brasileiro.
Em que medida a eleição de Donald Trump fortalece grupos ultraconservadores no Brasil?
As eleições do ano que vem ainda são imprevisíveis, mas é certo que haverá influência. Podemos observar diferentes impactos ao redor do mundo. No Canadá, por exemplo, o primeiro-ministro Justin Trudeau estava enfraquecido, mas conseguiu reverter sua situação devido a um sentimento nacionalista gerado pelas declarações agressivas de Trump sobre anexar territórios canadenses.
Já na Groenlândia, onde Trump também fez declarações sobre anexação, um partido de extrema-direita que defende a união com os Estados Unidos obteve seu melhor resultado na história. Na Alemanha, o partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD), alinhado a Trump e Elon Musk, não venceu, mas ficou em segundo lugar com uma votação expressiva.
O Brasil pode seguir qualquer um desses cenários. Ainda é cedo para afirmar se teremos um Congresso mais conservador, alinhado a Trump, ou se a oposição sairá fortalecida.
Do ponto de vista prático, de que forma uma decisão de Donald Trump interfere no dia a dia do cidadão comum brasileiro? Poderia nos dar um exemplo concreto dessa influência?
Essa interferência é muito maior do que imaginamos. Em primeiro lugar, os Estados Unidos são a maior economia real do mundo e, dependendo do critério utilizado, podem ocupar a primeira ou segunda posição em termos de Produto Interno Bruto (PIB). Independentemente disso, a economia norte-americana é uma verdadeira locomotiva global. Por muitos anos, os EUA foram o principal parceiro comercial do Brasil e, atualmente, ocupam a segunda posição.
Os analistas econômicos já apontam sinais de que, devido às políticas implementadas pelo governo Trump, os Estados Unidos podem estar entrando em um período de recessão. Se essa previsão se concretizar, o consumo norte-americano será reduzido, impactando diretamente as exportações brasileiras para o país, o que afeta diversos setores da economia nacional.
Outro ponto relevante é a política tarifária agressiva adotada por Trump. O aumento de tarifas pode gerar inflação nos EUA, mesmo em um cenário de recessão, o que nos remete ao conceito de estagflação, comumente observado nas economias do Norte Global nos anos 1970. Para conter essa inflação, o Federal Reserve (banco central norte-americano) pode aumentar as taxas de juros, o que levaria a uma fuga de investidores dos mercados emergentes, como o Brasil, para os Estados Unidos. Isso ocorre porque, com juros mais altos na economia considerada a mais segura do mundo, investidores preferem alocar seus recursos lá, reduzindo a liquidez e os investimentos no Brasil.
Para o consumidor brasileiro, isso se traduz em um efeito cascata. O Brasil, em resposta às tarifas impostas pelos EUA, pode aumentar suas próprias tarifas sobre produtos norte-americanos, encarecendo produtos que dependem de insumos importados. No final das contas, esse custo extra é repassado ao consumidor, que acaba pagando mais caro.
Trump também ameaça impor sanções comerciais e ampliar barreiras tarifárias para produtos importados, prejudicando o fluxo do comércio global. Mas como isso afeta, por exemplo, um morador de uma cidade portuária como Santos?
O impacto é significativo. Profissionais liberais que prestam serviços no setor portuário, como empresas de logística, transportadoras e seguradoras, serão diretamente afetados pela redução das transações comerciais internacionais. Além disso, os trabalhadores braçais, essenciais para a operação do porto, também sentirão o impacto. Mesmo com a automação crescente, a demanda por mão de obra humana ainda é alta. Se houver menos carga para movimentar, haverá menos trabalho disponível, levando a redução de postos de emprego.
O mais curioso nessa situação é que estamos testemunhando uma inversão de papéis no cenário global. O país que tradicionalmente defendia o livre mercado e o capitalismo está adotando medidas protecionistas, enquanto a China, considerada a grande rival dos EUA, tem se posicionado como a principal defensora do livre comércio. Essa mudança de postura sinaliza que, independentemente de quem seja o próximo presidente dos Estados Unidos, a tendência de protecionismo e guerra comercial deve continuar.
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