Fascinante e misterioso, há poucos dias o mar em Santos surpreendeu até quem está acostumado à convivência tão próxima, alternando cenários, cores, brilhos e até riscos. Ora o mar foi tingido por uma onda vermelha, ora as águas ganharam luz e tom azul fluorescente ou se perderam de vista em meio a intenso nevoeiro que paralisou a travessia marítima entre Santos e Guarujá e até interrompeu as operações no Canal do Porto.
Embora os estudiosos do ambiente marinho afirmem que tais fenômenos não são incomuns, não há registros anteriores de eventos com tamanha intensidade na baía de Santos. Assim como as ressacas vêm se tornando mais fortes e frequentes, levantando suspeitas sobre os efeitos da dragagem no Porto, o surgimento da maré vermelha e da bioluminescência (onda luminosa) pode denunciar o despejo clandestino de esgoto nas águas do mar de Santos, uma vez que os microorganismos que as formam se alimentam deste tipo de matéria orgânica.
Os pesquisadores têm várias hipóteses para explicar as ocorrências, mas nenhuma certeza, embora algumas situações sirvam de pista. “Nas duas semanas anteriores ao aparecimento do fenômeno, as medições da Cetesb acusaram todas as praias de Santos como impróprias para o banho de mar”, lembra o biólogo Renan Braga Ribeiro, do Núcleo de Pesquisas Biodinâmicas da Unisanta.
“É um conjunto de fatores. O diferente foi terem acontecido ao mesmo tempo, com mais intensidade e fora de época. A razão não se sabe ainda”, explica o pesquisador João Miragaia, professor do Mestrado em Ecologia da Unisanta. Segundo ele, a maré vermelha e a bioluminescência são dois fenômenos relacionados. Os organismos que formaram a maré vermelha teriam servido de fonte de alimento para outro plâncton, este responsável pela bioluminescência. “Houve florações de dois organismos distintos. São espécies nativas e não endêmicas, ou seja, também aparecem em outras regiões”.
Ressacas cada vez mais fortes
Professor titular do Instituto de Oceanografia da USP, Belmiro Mendes de Castro Filho explica que a ressaca ocorre pela soma de fatores que causam variações no nível do mar: maré alta, lua cheia ou nova e vento forte acompanhando uma frente fria. “Os fortes ventos que acompanham as frentes frias vindas do Sul elevam a superfície do mar. Quando não tem frente fria, o vento sopra do Nordeste ou Leste e o efeito é inverso, abaixando a superfície do mar”.
O nível do mar também sofre influência da Lua e do Sol. “A maré é semidiurna e completa o ciclo, com alta e baixa (preamar e baixamar) a cada 12 horas. Na Lua Cheia e na Lua Nova, a superfície no preamar alcança a altura máxima”.
Segundo ele, o fenômeno da ressaca é de larga escala, com extensão de centenas de quilômetros ao longo da costa. “Se alterado algo na geomorfologia de uma região, pode ser que numa situação de ressaca sofra mais ou menos, depende do tipo de intervenção humana feita na profundidade e linha da costa”.
O professor lembra que o planeta tem passado por mudanças climáticas e uma das consequências é o aquecimento global. “Quando a água do mar aquece, ocorre um processo físico chamado dilatação e o oceano aumenta de volume”. Já o biólogo Renan Ribeiro acredita que a dragagem influencia em parte: “com o canal aprofundado, a onda se propaga mais facilmente”.
Para Belmiro, não dá para afirmar que a dragagem do canal do estuário tem influência no aumento da frequência e intensidade das ressacas do mar em Santos. Mas dados divulgados pela própria Codesp deixam, a quem não é especialista, com a pulga atrás da orelha. Em dez anos, a profundidade média do canal do estuário aumentou de 12 metros para 15. Apenas no ano passado, foram retirados desta área cerca de 10 milhões de m³ de sedimentos.
Nevoeiro
Pode parecer estranho, mas o nevoeiro configura tempo muito estável, afirma o meteorologista Rodolfo Bonafim, da Ong Amigos da Água. “Uma das condições de existência do nevoeiro é a falta de ventos mais fortes. Já que o sol não consegue romper a densa camada de névoa, a aproximação de uma frente muda o padrão de ventos na atmosfera da região, causando turbulência suficiente para dissipação da persistente camada de névoa”, explica. “As ondas de frio atípicas que aqui chegaram, mais as outras massas polares quase constantes, resfriaram o mar bem antes da época (o comum é final de julho e início de agosto) e não é à toa que estão ocorrendo tantos densos nevoeiros de mar”.
Maré vermelha ameaça vida marinha
Parte do fitoplâncton, base da cadeia alimentar aquática, as algas microscópicas aumentam em grandes proporções, fazendo com que o fenômeno da maré vermelha aconteça. O nome técnico é Floração de Alga Nociva (FAN) e é mais apropriado, considerando os efeitos danosos do fenômeno para a natureza, à vida marinha e até para o ser humano. Miragaia explica que a mancha vermelha pode causar a morte de peixes e prejudicar a pesca, pois as bactérias que atuam na decomposição desses micro-organismos consomem o oxigênio da água, além de liberar substâncias tóxicas à pele do homem.
O inverno atípico, com as temperaturas mais baixas dos últimos 28 anos, também pode ter contribuído para esfriar a água do mar, criando um ambiente propício para a multiplicação desses seres. “Nos últimos dois meses, a temperatura da água a 10 metros de profundidade, na altura da Ilha das Palmas, no canal do estuário, apresentou queda significativa. No início de maio o sensor ali instalado captou 24 graus. Na semana em que ocorreram os fenômenos caiu para 17 graus”, conta o biólogo.
Ondas fluorescentes
O fenômeno da bioluminescência acontece quando grupos de criaturas marinhas microscópicas são agitados em grande quantidade pelas ondas do mar. O professor Miragaia explica que esta é uma mancha presente o tempo todo na região e, embora não seja fácil avistá-los na água do mar, basta esfregar o pé na areia úmida para ver uns pontinhos esverdeados. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência para esses seres vivos. “A ideia que se supõe é que essa luz pode repelir o predador”. O espetáculo é belo visualmente, mas sua ocorrência pode estar relacionada à poluição do mar e aumento da carga orgânica de esgotos na água, motivo que levanta a bandeira do perigo e merece ser melhor estudado.
Rodolfo Bonafim, da Ong Amigos da Água, chama a atenção para dois fenômenos atípicos ocorrerem simultaneamente. “Diversos animais marinhos foram encontrados mortos na nossa costa: baleia no Guarujá, golfinho em Peruíbe e tartaruga em Santos. Não há consenso ainda do que teria causado a morte desses espécimes, porém, a aparição dos animais bioluminescentes poderia ser a causa ou mera coincidência?”, questiona.