Muitas coisas marcaram a história da cidade de Santos: o café, os quilombos e a abolição, a chegada de imigrantes, os canais de Saturnino, a construção do Porto, o Rei do Futebol. Dez anos atrás, a queda do avião do candidato à Presidência da República Eduardo Campos e sua comitiva se tornou um marco nesta história. Quem acompanhou a tragédia ainda sente um desconforto ao lembrar. Esta repórter que lhes escreve nunca mais foi a mesma.
13 de agosto de 2014 foi um típico dia de inverno em Santos: frio e úmido. Em terra, a chuva incomodava quem precisou sair para trabalhar. Nos céus, soubemos depois, as condições de visibilidade para aeronaves não eram favoráveis. Eu estava na redação do Jornal da Orla redigindo as principais notícias do dia quando chegaram as primeiras informações de que um helicóptero havia caído no bairro do Boqueirão.
À época, aos 27 anos, eu não sabia se a cidade presenciara algum evento do tipo antes. Havia poucos helipontos por aqui e não lembrávamos de nenhum naquela vizinhança. Tinha vítimas? Era um empresário? Para onde ele estava indo? As perguntas se acumulavam, mas havia uma que permanecia no fundo das nossas mentes enquanto alguns da equipe se entreolhavam: será que é o avião do Eduardo?
Naquela manhã, o então candidato tinha uma entrevista marcada no JO e já estava atrasado. Não sei quantas foram as vezes que o diretor de Redação, Edison Carpentieri, tentou acionar os assessores e contatos para saber se Eduardo compareceria. Com a notícia da queda de um helicóptero, ficamos sem entender. Sabíamos que ele estava a bordo de um jato, não de helicóptero. Não poderia ser ele.
Uma hora depois, ou pouco mais, as suspeitas se confirmaram. Era o avião que trazia o político e seus assessores. O piloto Marcos Martins, homem que me fez acreditar em heróis depois do acidente, jogou a aeronave entre dois prédios, num terreno baldio, provavelmente na tentativa de evitar um acidente maior.
Eu fui designada para fazer a cobertura e cheguei ao local embaixo de chuva, tentando alcançar os outros jornalistas para entender o que já tínhamos de informações oficiais. Lembro de olhar as pessoas em volta dos espaços isolados pelo Corpo de Bombeiros ainda anestesiadas com a surrealidade do que estava acontecendo. Eu também não acreditava que estava presenciando a história. Afinal, havia um certame eleitoral pela frente que sofreria uma reviravolta com aquilo tudo.
Conversei com moradores. Alguns indignados por não estarem autorizados a entrar em seus apartamentos para retirar documentos e coisas importantes. Outros ainda em choque porque peças do avião caíram em suas casas. Nosso fotógrafo Leandro Amaral chegou antes de mim e conseguiu entrevistar algumas pessoas. Nos espremíamos na tentativa de captar imagens. Cheguei a ajoelhar para conseguir direcionar o microfone do Orlaplay ao porta-voz dos Bombeiros.
A minha adrenalina baixou quando vi o veículo que transportava cães farejadores. “Por que trouxeram os cães, Leandro?”, perguntei com ingenuidade. “Bárbara, não há mais corpos”, ele respondeu. Senti que tudo passou a ficar em câmera lenta a partir de então.
Já não era mais a história da cidade sendo escrita, moradores que teriam seus imóveis inundados para que o fogo fosse apagado, as eleições presidenciais, a matéria que eu precisaria editar e colocar no YouTube. Eduardo Campos, Alexandre Severo (fotógrafo), Carlos Augusto Ramos Leal Filho (assessor de imprensa), Pedro Valadares Neto (assessor), Marcelo de Oliveira Lyra (cinegrafista), Geraldo da Cunha (copiloto) e Marcos Martins não estavam mais lá.
Um ano depois retornei ao local acompanhada pelo cinegrafista Rômulo de Melo para saber como as pessoas que foram mais afetadas pelo acidente seguiram suas vidas. Uma academia estava sendo reconstruída, o apartamento da dona Marlene estava reformado. Mas havia muita coisa ainda pendente, como os traumas que ficaram. Alguns disseram que, mesmo após um ano, ainda escutavam o barulho da turbina do avião.
Cobrir tragédias muda a forma como nós, repórteres, olhamos e sentimos o mundo. Fui designada a cobrir outra depois disso e também a escrever sobre temas difíceis, que enchem xícaras de café e roubam horas de sono. Mas o 13 de agosto de 2014, para mim, foi maior do que o tempo. Desde aquele dia, onde eu estiver, fico apavorada quando escuto aeronaves voando baixo…
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