Há uma situação possível de acontecer com os escritores, principalmente os poetas, que as pessoas normais podem desconhecer. Os especialistas chamam de bloqueio criativo e confesso que isso já aconteceu comigo. Fiquei sem escrever poemas durante 24 anos de minha vida, no período compreendido entre 1984 e 2008.
Quem depende da escrita para sobreviver, esse pode ser um problemão. Ainda bem que para mim aconteceu apenas em relação à poesia, deixando todo o resto – crônicas, artigos, matérias jornalísticas, discursos etc. – livres para eu garantir o meu pão de cada dia. Certa vez o grande poeta brasileiro, Ferreira Gullar, escreveu sobre um texto que ele perdeu no meio dos seus livros e escritos e coisas do seu dia a dia.
Gullar conta isso numa crônica publicada na Folha Ilustrada, em setembro de 2015, com o título “Buscar o perdido”, que é uma delícia de ler, principalmente porque além de tentar achar o original do conto chamado “Osíris Come Flores” (que lhe garantiu um emprego na revista “O Cruzeiro”), ele sintetiza o seu processo criativo. Antes, porém, dá pra sentir na pele de escritor a sua angústia quando desabafa: “Tenho que achar esse texto, custe o que custar! ”, que ele achou.
E começou a revirar o armário onde guardava as pastas com o que escreveu e o que escreveram sobre ele, incluindo revistas e recortes de jornal: “Oito prateleiras atochadas de pastas, envelopes e embrulhos”, contou. Ora, me senti no seu lugar, no meio da minha bagunça organizada em casa; antes eu dispunha também de um escritório com esse cenário.
O mesmo Ferreira Gullar, falecido em dezembro de 2016, revelou numa entrevista, um ano antes de sua morte, que a poesia nascia dele como se desconhecesse o mundo, “porque o mundo não tem explicação e que a inspiração surge de espantos: espanto diante do inusitado que me move. E isso não posso buscar. Se tudo na vida acaba, porque minha capacidade de escrever não poderia terminar? ”
Essa releitura tem muito a ver com “Um Olhar Sobre o Mundo”, porque tomando Ferreira Gullar como referência, lembro que ele não foi apenas um grande poeta brasileiro, mas escritor, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta e um dos fundadores do neoconcretismo. Aproveito essa história sobre o ato de escrever, para comparar com a água, que não é infinita e depende de um ciclo natural que pode torná-la escassa e inspira cuidados que preservem as suas fontes.
Por seu lado, o escritor não é uma cachoeira de palavras, nascida do nada. A escrita origina naturalmente da leitura de outras escritas, conhecimento, vivências, verdades. Sou favorável à escrita sobre coisas que movem as vidas das pessoas, a natureza e o universo. Assim vejo mais sentido ainda na importância da água, contextualizando, quando a sua relação com o todo é fantástica e a sua involuntária escassez se agrava por conta da atuação humana, da desigualdade social e da falta de manejo e usos sustentáveis dos recursos naturais.
Tanto quanto o bloqueio criativo dos poetas, que muitos podem ter ouvido pela primeira vez agora, acho que ignoram que a irrigação corresponde a 73% do consumo de água, que 21% vai para a indústria e que apenas 6% destina-se ao consumo doméstico. Ou ainda que a industrialização consome mais água que a urbanização, e que a concentração populacional gera demandas adicionais de consumo, na medida que as pessoas acessam a cadeia alimentícia e passam a consumir mais carne bovina, suína, aves, ovos e laticínios, consomem mais grãos.
Parece confusa essa mistura, não é mesmo? A natureza e os poetas. Quando escasseiam os seus produtos é comum valorizar formas inovadoras de se comunicar. De um lado, a natureza fica agradecida, com o seu ciclo, dos cuidados com as nascentes e o senso do não desperdício. Esses estímulos resultam de justificadas campanhas para o uso racional da água, como alertas à preservação ambiental e engajamentos, contra o perigo das torneiras secarem.
E os poetas que se travam? Aí me aproprio da definição de Ferreira Gullar, que do óbvio não há espanto e não espantando não se criam poesias. A poesia ou a linguagem poética depende da alma do poeta, alimentada por seus amores e humores. Na sabedoria, comuns, poetas e natureza, sobrevivem de amor.
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