Gente que faz

Um beduíno à beira-mar

05/10/2019
Um beduíno à beira-mar | Jornal da Orla

Já tem quase 60 anos que Elias Bakhos abriu sua primeira casa de comida árabe em Santos, em um tempo que a gastronomia do Oriente Médio fazia pouco gosto neste lado do planeta. A aposta deu certo e hoje a rede Beduíno é referência na cidade, com 4 restaurantes, um padaria exclusiva e  142 funcionários. Em dias úteis, a rede recebe de 600 a 700 consumidores, com acréscimo de 40% no público aos finais de semana e feriados. “O Beduíno introduziu a comida árabe comercial em Santos”, conta Elias, orgulhoso de seu empreendimento.

 

Berinjelas, abobrinhas, esfirras, kibes, coalhada, homus, pães e outros quitutes de dar água na boca garantiram o sucesso e a longevidade do negócio. As receitas ricas em especiarias foram ensinadas a Elias por seu pai José, um imigrante sírio que chegou com a família ao país em 1947, e foram adaptadas ao paladar do brasileiro, assim como aconteceu com a cozinha japonesa, chinesa e até italiana. 

 

Elias, hoje com 79 anos, tinha apenas 6 anos de idade quando deixou Damasco, a capital da Síria, com a família em busca de um futuro melhor. Na época, assim como hoje, a Síria vivia conflitos armados que forçaram parte da população a buscar refúgio em outros países. Os pais e quatro filhos foram primeiro para a França e depois de alguns dias embarcaram em um navio cargueiro rumo ao Brasil. Aqui já os esperava um tio, dono de um hotel no José Menino.

 

Vida da imigrante 
Apesar da pouca idade, Elias guardou a lembrança da viagem de 54 dias no navio cargueiro. “Têm duas coisas que ficam na memória. Muita tristeza e sofrimento ou muita alegria. Era um banheiro comum para atender seis famílias e os tripulantes traziam comida pra nós; leite condensado para dissolver na água, frutas, torrão de açúcar preto, pão preto tipo broa”.

 

A família nunca tinha visto o mar e o pai tinha escutado a história de um peixe tão grande que virava o barco com o rabo. “Devia ser uma baleia”, diverte-se Elias. Zeloso pela proteção dos seus, o chefe da família passava horas no convés com receio do tal monstro dos mares.

 

Nos anos 40, o Brasil exigia do imigrante uma carta de chamada, o que nada mais era do que o testemunho de alguém aqui radicado garantindo estar condições de receber e sustentar os que chegavam. E assim o tio lhes arrumou emprego.

 

O pai José logo foi trabalhar de garçom e cozinheiro na pensão Vitória, no Gonzaga, enquanto a mãe era lavadeira e arrumadeira e Elias, apesar de muito menino, ajudava varrendo o quintal. Era o mais velho dos quatro filhos. Em troca, podiam morar e comer no local.

 

“Qualquer imigrante pobre tem vida sofrida”, diz o comerciante, que na atual guerra na Síria amparou três conterrâneos refugiados que bateram à porta de seu restaurante. Um foi contratado pela rede. Pela qualificação, Elias conseguiu colocar o casal – um engenheiro da computação e uma farmacêutica – no mercado profissional.

 

Espírito de empreendedor
O tio deu uma força e o pai José acabou por comprar a pensão, passando a atender encomendas de quitutes árabes, como esfirras e kibes. Foi aí que Elias percebeu um público em potencial e apostou no seu primeiro restaurante, aberto em março de 1961 na Avenida Presidente Wilson, 41.

 

Casado com Mirian, o casal tem três filhos – Paulo Eduardo, Vivian e Lilian – e 5 netos. Os filhos hoje estão à frente do negócio, que reúne lojas nos shopping Parque Balneário e Miramar, na Avenida Ana Costa e Rua Floriano Peixoto, mas é engano achar que Elias pendurou as chuteiras. Ele passa de 8 a 9 horas por dia em seus restaurantes e, como bom empreendedor, tem ainda um sonho a realizar.
“Montaria mais lojas, sempre em Santos. Falta uma casa para completar meu sonho. Seria outro restaurante, mas com diferencial, tenho tudo na cabeça, mas nem meus filhos sabem”, confidencia, sorrindo. A cidade aguarda.

 

Santista de carteirinha
Elias se declara santista desde o primeiro dia que pisou na cidade. Em mais de sete décadas sempre viveu em um quadrilátero do Gonzaga e fala que não há coisa melhor. “Minha relação familiar, comercial, emocional, está tudo aqui. Santos é tudo para mim. Aqui tem praia, a cidade plana, quem não queria ter isto? Bebi água da biquinha”, brinca, referindo-se a uma lenda local. 

 

Ele chegou à cidade na época em que havia raros prédios, o bonde circulava sobre dormentes assentados na areia da praia, do Canal 4 em diante predominavam sítios de chuchu. “O que era bom na Ponta da Praia era o campo do Jabaquara, na área onde hoje fica a Rua Trabulsi”, recorda. 

 

Prestes a entrar na oitava década de vida, Elias não abre mão da comida árabe no seu dia a dia. “Como tomo dia, só domingo que fica por conta dos meus filhos”. Mas como bom brasileiro, o prato preferido da nossa cozinha é o tradicional arroz e feijão. “Adoro feijão, tutu, feijoada, qualquer tipo”.

 

Elias Bakhos já viajou muito, dentro e fora do Brasil. Há um ano esteve em Damasco, na Síria, visitando uns primos. Não temeu a guerra. “Na capital a gente não sente, está tudo normal. E ninguém morre de véspera”. Mas, avisa: “viajo com passagem de volta sempre. Aqui é minha terra, aqui tive tudo, trabalho, família, nome, tradição. Respeito a colônia síria, mas me considero brasileiro nato”.

 

 

Fotos: Divulgação