Sala de Ideias

Pipas

03/01/2024
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Neste primeiro dia do ano, vi uma pipa diferente. Parei pra ficar admirando os movimentos dela, na praia de Santos, perto do Canal 1.
Eu fazia uma oração, a primeira de 2024, durante uma caminhada solitária na beira do mar. Um rapaz manobrava a pipa. Em forma de morcego, uns 70 cm de largura por uns 20 de altura, preta, vermelha e branca, a pipa fazia quedas abruptas e muito rápidas até perto da areia e depois subia de novo. Lembrava mesmo, pela velocidade e pelas mudanças bruscas de direção, os voos de um morcego.
A movimentação era comandada pelo rapaz, com uma habilidade impressionante, não por uma linha, mas sim por duas, paralelas.
Gosto muito de empinar pipas. Herdei de meu pai essa paixão. Habilíssimo construtor do que ele chamava “papagaios”, meu pai iluminou de encanto a minha infância com alguns desses brinquedos, que eu nunca mais esqueci.
Lembro particularmente de dois papagaios, que ele me levava pra empinar junto com ele num terreno vazio, perto da nossa casa, onde depois foi edificado o Hospital dos Estivadores.
Eram enormes, formados por 4 varetas de bambu, em forma de octógono, parecidos com aquela pipa tradicional, hexagonal, de 3 varetas. No fundo do quintal da minha casa tinha um bambuzal, que eu e meus irmãos chamávamos de “bambual”. Dali saía uma parte da matéria-prima dos papagaios.
Imagino que o diâmetro daquelas duas pipas tinha mais ou menos um metro e meio. Elas eram bem maiores do que eu, nos meus 5, 6 anos. A primeira tinha o desenho de um relógio, com os números e os ponteiros em vermelho. No ano seguinte meu pai construiu uma toda branca com um enorme escudo do Santos desenhado em tiras de papel de seda preto e ocupando todo o espaço da pipa.
Outra paixão que herdei do meu pai foi essa, pelo Santos. Já vinha dos meus avós e eu transmiti para os meus filhos, Guilherme e Luiza.
A paixão pelas pipas, essa eu não consegui transmitir. Uma porque, menos habilidoso que meu pai, as pipas hexagonais, com coloridos geométricos simples que eu construí pra empinar com eles, não tinham o mesmo charme das do meu pai. Outra porque a concorrência dos brinquedos eletrônicos atuais, principalmente os de tela, é muito mais difícil de enfrentar, para uma pipa, do que a dos brinquedos da minha infância.
Na época da universidade, década de 70, curso de engenharia, a minha namorada na época, Cinthia, me trouxe de
presente, de São Francisco, Estados Unidos, uma pipa maravilhosa. Era um dragão de plástico, super-colorido, estreito de mais ou menos 40-50 cm e com uns 8-9 metros de altura. A armação, só na parte de cima, era de tubo flexível de plástico. Depois ela vinha solta, como se fosse uma rabiola. Fez sensação na praias de Santos e de Guarujá, onde eu a empinei. Era linda demais.
A pipa deste primeiro dia do ano, a do morcego, encheu meu coração de saudade e de esperança.
Saudade do meu pai e do encanto, multiplicado infinitamente pelos tantos anos que se passaram, dos papagaios que ele construía para empinar comigo.
E esperança de que, quem sabe, eu possa aprender a construir pipas tão encantadoras como essa do morcego tricolor dos voos rasantes e assim, pulando uma geração, transmitir a paixão por elas aos meus netos. Que, por sinal, ainda não chegaram.