Crônica

O inferno são os outros

11/01/2025
O inferno são os outros | Jornal da Orla

Nesta semana, um supermercado de Santos ofereceu uma promoção de cestas de Natal. O que custava R$ 80 (79,99) no final do ano, poderia ser comprado por R$ 40 (39,99) dez dias depois. É muita diferença. Mas se você fizer a soma dos preços dos produtos que estão na cesta, mesmo na promoção, vai chegar à conclusão de que não vale a pena comprar. Até porque nem tudo que está ali faz parte do abastecimento da sua casa.

Essa promoção faz lembrar de um livro da escritora francesa Annie Ernaux: Olha as Luzes, Meu Amor. Ernaux, prêmio Nobel em 2022, transformou em literatura, e literatura de ótima qualidade, um diário em que anotou as observações que fez a cada ida a um supermercado, principalmente o Auchan, nos arredores de Paris, na década passada. 

Nada integra mais as etnias, as faixas etárias, as profissões e as classes de renda diferentes do que o convívio num supermercado, ela escreve. Uma fonte riquíssima de análise da nossa civilização do século 21. E uma das observações que a escritora faz no livro aborda justamente as promoções que se seguem ao final do ano. Descreve um balaio cheio de brinquedos ofertados por preços menores do que a metade dos praticados antes do Natal. E mesmo assim, nenhum cliente do Auchan se interessa. Nem para estocar para um próximo aniversário de criança ou para o próximo Natal, ela especula.

A psicologia do consumidor abriga desconexões desse tipo. Antes do Natal, as cestas representavam uma tentação, como também os brinquedos de Paris. Acendiam um desejo de compra. Três ou quatro dias depois, a mesma pessoa passa pelos mesmos produtos, com preços muito mais baixos, com total indiferença.

Annie Ernoux conclui que o mercado, no caso o supermercado, manda no nosso desejo. Você, leitora / leitor, concorda com ela?

No mesmo livro, outra observação interessante sobre a psicologia do consumidor aborda as camisetas produzidas na China. Com muita agudeza, Ernoux observa que mesmo o trabalhador francês que perdeu o emprego por causa da concorrência desleal da indústria chinesa, que utiliza trabalho semi-escravo, adora comprar as camisetas por 6 ou 7 euros.

Para caminhar do desejo inconsciente da cesta ou do brinquedo para a opção alienada da camiseta, bastou cruzar um corredor de supermercado.

E assim caminha a humanidade. De maneira irracional. A somatória destes pequenos atos alienados pode se transformar numa inacreditável ilha de lixo plástico no Oceano Pacífico. Ou nas praias poluídas e impróprias para banho do litoral paulista neste início de ano. Na emissão destrambelhada de carbono que mata os corais na costa brasileira e fez de 2024 o ano mais quente do planeta desde que se registram as temperaturas.

Seres humanos pretensiosos não conseguimos nos ver manipulados pelas estratégias de marketing. Nem como autores dos desastres ambientais trazidos pelas mudanças climáticas.

No nosso imaginário, como definiu o filósofo francês Jean Sartre, “O Inferno São os Outros”.