Significados do Judaísmo

O impossível dilema dos Sonderkommandos

27/01/2023
O impossível dilema dos Sonderkommandos | Jornal da Orla

O proeminente sobrevivente de Auschwitz Primo Levi escreveu em Os Afogados e os Sobreviventes que a criação dos Sonderkommando foi o crime mais satânico do nazismo.

“Foi uma decisão deliberada dos alemães de empregá-los. Eles também queriam que os judeus compartilhassem a culpa. Essa é uma ideia muito cruel. Eles tentaram embaçar a linha que separa criminosos e vítimas.”

A palavra Sonderkommando significa “unidade especial” em alemão e eram jovens prisioneiros – todos homens aptos – selecionados para a unidade quando chegavam ao acampamento e eram forçados a servir sem receber instruções sobre quais seriam suas tarefas. Eram obrigados a levantar cadáveres, recebiam rações melhores do que os outros prisioneiros. Eles também foram mantidos em isolamento; a maioria nunca interagiu com outros prisioneiros no campo, além de outros membros da unidade e aqueles que estavam prestes a ser assassinados.

Em Auschwitz, o Sonderkommando tinha melhores condições físicas do que outros presos; tinha comida decente, dormia em colchões de palha e podiam usar roupas normais. Assim, muitos dos prisioneiros dos campos acreditavam que eles eram colaboradores dos nazistas. A unidade foi dividida em vários grupos, cada um com uma função especializada. Alguns recebiam e cumprimentavam os recém-chegados, dizendo-lhes que iriam tomar banho antes de serem enviados para o trabalho. Eram obrigados a mentir, dizendo aos prisioneiros prestes a serem assassinados que, após o processo de despiolha, seriam designados para equipes de trabalho e reunidos com suas famílias. Esses eram os únicos do Sonderkommando que tinham contato com as vítimas enquanto ainda estavam vivas.

A SS realizava os gaseamentos, e o Sonderkommando entrava nas câmaras depois, retirava os corpos, os processava e os transportava para o crematório. Os restos eram reduzidos a pó e misturados com as cinzas.

Em Treblinka, cerca de 200 homens foram encarregados de retirar os cadáveres das câmaras de gás. Em Auschwitz, o Sonderkommando trabalhando nos crematórios contava inicialmente com 400 homens, mas o número aumentou durante o assassinato em massa de húngaros em 1944 para cerca de 1.000. Em Auschwitz e Birkenau, o Sonderkommando era responsável por separar as malas, pacotes e outros itens com os quais os prisioneiros chegavam nos trens.

Apesar das melhores condições em que o Sonderkommando vivia nos campos, a maioria acabou sendo gaseada à medida que se tornava cada vez mais fraca ou doente devido às condições do campo. Os nazistas também não queriam que nenhuma evidência de seus atos horríveis permanecesse e, portanto, decidiram matar os prisioneiros que testemunharam suas ações.

O premiado filme “O Filho de Saul”, que recebeu inúmeros prêmios, como o Globo de Ouro, Cannes e o Oscar de filme estrangeiro em 2016, descreve como os Sonderkommando eram apelidados de “portadores de segredos” (Geheimnisträger), pois vivenciavam dia após dia todo o processo da “cadeia industrial” do “tratamento” das vítimas. A morte fazia parte de sua rotina diária, estando entranhada em suas narinas, em sua pele, mente – e espírito.

Há quem os condene moralmente por sua suposta “colaboração” com os carrascos, mas somente uma profunda falta de conhecimento sobre o nazismo e a “Solução Final” permite a alguém supor que os Sonderkommando dispunham de alternativa ao que faziam, a não ser a morte. Ninguém “escolhia” entrar e tampouco sair do “comando especial”. Se algum deles se recusasse era morto no ato. Tampouco havia como não cumprir as ordens nazistas. Houve casos de Sonderkommandos que por terem avisado judeus do que estava por vir foram atirados vivos às chamas dos fornos, na presença de todos os seus companheiros de infortúnio, para servir de exemplo.

Esses prisioneiros eram “marcados para morrer” – seu tempo de vida era de três, quatro meses. Não poderia haver qualquer tipo de vazamento sobre o que testemunhavam. Um deles, interpelado por um de seus companheiros se queria ser morto, responde: “Já estamos todos mortos” …

Membros do grupo esfregavam o chão das câmaras para limpar o sangue e excremento para que os que estavam por vir não adivinhassem o que os esperava. Manter as vítimas na ignorância era a melhor forma de assegurar que a morte em massa se desenrolasse sem “atrasos ou contratempos”. Enquanto isso, outros Sonderkommando alimentavam as fornalhas com carvão, onde os corpos eram incinerados, e, no final, transportavam o amontoado de cinzas para ser lançado no Vístula, para não deixar rastro nem vestígios.

Em 1944, o campo de extermínio nazista de Auschwitz-Birkenau funcionava em sua capacidade máxima. Na primavera deste ano, 350.000 judeus húngaros haviam morrido nas câmaras de gás – eles representavam um terço do número total de vítimas do campo. No final do verão, porém, chegavam cada vez menos transportes, e os internos do Sonderkommando perceberam que logo seria sua vez de morrer, sendo eles testemunhas oculares dos crimes.

Isso deu origem a uma iniciativa para organizar uma rebelião e fuga que se espalharia por todo o campo. Os temores dos prisioneiros não eram infundados. Já em setembro, os alemães assassinaram 200 membros do Sonderkommando e, em 7 de outubro, os conspiradores obtiveram informações sobre a transferência planejada de outros 300, supostamente para outro campo. Isso os obrigou a agir imediatamente. Naquele dia, por volta das 13h, os alemães ordenaram uma chamada dos prisioneiros destinados ao crematório IV, chamando aqueles a serem transportados de acordo com seus números.

Prisioneiros ameaçados começaram a atirar martelos, pés-de-cabra, machados e pedras. Alguns escaparam para o prédio do crematório, que incendiaram. Uma briga começou, que terminou em um massacre de prisioneiros.

Ao mesmo tempo, ao ver as chamas e o som dos tiros, os prisioneiros que trabalhavam no crematório II atacaram os guardas, reconhecendo que uma revolta estava acontecendo no campo.

Cerca de 250 prisioneiros morreram em combate e durante uma tentativa de fuga, enquanto outros 200 foram mortos pelos alemães como parte da repressão. Em 7 de outubro de 1944, o Sonderkommando consistia em 663 prisioneiros; após a rebelião restaram apenas 212, 451 prisioneiros morreram. Os alemães perderam três homens e mais de uma dúzia ficaram feridos. Cerca de 80 participantes dos Sonderkommandos sobreviveram à guerra.

Mas, mesmo entre os Sonderkommandos, assim como entre tantos outros judeus durante a Shoá, houve os que encontraram forma de resistir, de subverter as regras num mundo de silêncio e trevas. Foi ao redor dos seus barracões que foram encontrados fragmentos de papel enterrados, com relatos e descrições sobre o sofrimento, a máquina de extermínio nazista, as plantas dos edifícios sobre o que os judeus chamaram “o Inferno de Auschwitz-Birkenau”. Deixaram-nos também quatro célebres fotografias tiradas em Birkenau. As narrações descrevem a angústia diária de estar em constante contato com a carnificina, e imploravam ao mundo para entender como os prisioneiros do Sonderkommando não fizeram seu trabalho de boa vontade, mas foram forçados pelos nazistas a participar do processo de extermínio.

Hoje em dia, parece haver uma melhor compreensão da vida dos Sonderkommandos nos campos de massacre.

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete a linha editorial e ideológica do Jornal da Orla. O jornal não se responsabiliza pelas colunas publicadas neste espaço.