
Por entre os corredores iluminados do Consistório da Universidade Santa Cecília, em Santos, a noite da próxima quarta-feira (23) promete mais do que um simples evento literário. Trata-se de um reencontro. Um reencontro com a palavra, com a memória, com a presença ainda palpitante de uma das grandes – e, paradoxalmente, esquecidas – vozes femininas da literatura brasileira: Dinah Silveira de Queiroz. A partir das 19h, a Academia Santista de Letras abre espaço para o projeto “Encontro com a prosa de Dinah Silveira de Queiroz”, um mergulho profundo em sua obra multifacetada, com entrada gratuita e espírito generoso.
É dentro dessa atmosfera de resgate e reverência que a diretora de comunicação da Academia, Ana Sachetto, fala com entusiasmo sobre a iniciativa. “Nosso objetivo é manter vivos os nomes fundamentais da nossa literatura, aproximar o público dessas obras e incentivar novos leitores”, explica. “Quem comparece aos encontros muitas vezes sai tocado, curioso para conhecer mais. É esse o papel do projeto.” Não se trata apenas de estudar autores consagrados, mas de reavivar o desejo de leitura num tempo em que a palavra precisa ser cultivada como resistência.
A missão de conduzir esse encontro cabe à professora Katya Patella, uma apaixonada confessa pela autora. Acadêmica titular da Cadeira nº 1 da entidade, Katya é também docente de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), avaliadora do Ministério da Educação e pesquisadora de Linguística. Ela aceitou o convite com imediata disposição. “Dinah é uma das minhas escritoras prediletas, mas infelizmente é pouco lembrada. Minha intenção é resgatar sua obra e despertar o desejo de leitura nas pessoas”, afirma.
Dinah Silveira de Queiroz, nascida em 1911 e falecida em 1982, foi uma força criativa que resistiu às convenções de seu tempo. Romancista, contista, cronista, dramaturga e até autora de ficção científica – uma ousadia rara entre mulheres do século XX –, Dinah se destacou como figura central no cenário literário brasileiro. Entre suas obras mais emblemáticas estão A Muralha, romance histórico que ganhou os holofotes ao ser adaptado para a televisão pela TV Globo em 2000; Floradas na Serra, livro que nasceu da experiência íntima com a tuberculose e que ganhou versão cinematográfica em 1954; e Margarida La Rocque, obra pioneira dentro do gênero de ficção especulativa escrita por uma autora brasileira.
Katya Patella destaca o papel de Dinah como precursora do realismo fantástico no Brasil, antecipando uma linguagem híbrida que hoje ecoa em autores como José J. Veiga e Murilo Rubião. “Ela foi precursora do que hoje chamamos de realismo fantástico. É uma autora muito rica, e essa diversidade precisa ser reconhecida”, observa.
A noite literária não será apenas sobre os livros, mas sobre o símbolo que Dinah representa para as mulheres escritoras. Foi ela quem liderou, junto com outras vozes femininas, a campanha para a mudança no estatuto da Academia Brasileira de Letras, permitindo a entrada de mulheres. Raquel de Queiroz foi a primeira imortal, em 1977. Dinah entrou logo em seguida, em 1980. “Essa conquista histórica, esse gesto político e literário, mostra sua visão além do tempo. Dinah foi uma voz que não se curvou”, reforça Katya.
O evento da Academia Santista de Letras propõe mais do que uma retrospectiva: será uma jornada pela vida íntima, emocional e política de Dinah. A professora Katya pretende costurar aspectos biográficos com trechos da produção literária da autora, destacando títulos menos conhecidos, como Memorial do Cristo e a biografia da princesa Isabel. “Ela tinha uma relação muito profunda com a história do Brasil e com a ideia de heroísmo feminino”, comenta.
O público também conhecerá histórias pessoais que ilustram o espírito de Dinah. Uma delas é quase mítica: ainda jovem, casada com um advogado, Dinah se queixou ao marido de que já tinha lido todos os livros da estante da casa. “Então escreva você mesma!”, teria sugerido o marido. E assim nasceu seu primeiro conto, Pecado, que ganhou prêmio internacional em 1937 e foi traduzido para o inglês – início de uma trajetória literária fulgurante. Floradas na Serra, publicado em 1939, veio pouco depois e rapidamente conquistou os leitores. Inspirado pela experiência com a tuberculose – a mesma doença que lhe tirara a mãe quando ela tinha apenas três anos –, o romance se tornou uma obra de delicadeza e introspecção, capaz de tocar leitores até hoje com sua prosa lírica e sensível.
Para Katya Patella, a identificação com Dinah ultrapassa a admiração intelectual. “A garra dela me impressiona. Ela retrata com maestria as contradições humanas e escreve com um domínio da língua portuguesa que encanta. Tem um compromisso estético que me inspira”, confessa.
Entre os pontos altos da palestra, estará a análise de Guida, caríssima Guida, o último romance da autora, ditado nos seus últimos dias de vida. Já sem forças para escrever, Dinah fez da voz sua última ferramenta criativa. “Uma força admirável, que emociona. Esse gesto final sintetiza quem ela foi: uma mulher movida pela palavra até o fim”, diz Katya.
O evento integra uma série de ações da Academia Santista de Letras voltadas para a valorização da cultura brasileira, e especialmente para o estímulo à leitura entre jovens e adultos. Com um formato acessível, gratuito e envolvente, os encontros não apenas celebram os grandes nomes da literatura, mas também constroem pontes entre o passado e o presente — entre a palavra escrita e a sensibilidade do leitor contemporâneo.
Em tempos de urgência cultural, em que a memória literária é tantas vezes atropelada pela velocidade do esquecimento, ouvir Dinah Silveira de Queiroz é, mais do que nunca, um ato de resistência. Como suas personagens, que enfrentam muralhas internas e externas, a autora continua viva. E fala. Basta estar atento para escutar.
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