Significados do Judaísmo

A jornada dos judeus no Império Otomano

20/01/2023
A jornada dos judeus no Império Otomano | Jornal da Orla

O trágico fim da presença judaica na Espanha abriu o caminho para o surgimento de um novo capítulo nas relações turco-judaicas, que teve impactos profundos na história desses dois povos, mas também do Oriente Próximo e da Europa.

Entretanto, a história dos judeus na Turquia abrange os 2.400 anos em que o povo hebreu viveu no território que é hoje a Turquia. Existem comunidades judaicas na Anatólia desde pelo menos o século V AEC.

Algumas comunidades judaicas que então lá estavam se comunicavam através do idioma grego e já habitavam todas sob o domínio otomano na época da queda de Constantinopla – renomeada Istambul – em 1453. Essas comunidades foram chamadas pelos novos imigrantes da Espanha e Portugal de “Romaniots” ou “Gregos”.

Os judeus de língua árabe (chamados de “Mustarabs” pelos refugiados ibéricos), foram um outro grupo indígena importante. Eles viviam no “Arabistan” – países conquistados principalmente durante o reinado de Selim I (1512-1520) e de seu filho Solimão, o Magnífico (1520-1566).

Em 1492, como resposta ao Decreto de Alhambra, expulsando os judeus da Espanha, de 31 de julho do mesmo ano, o sultão Bayezid II enviou a marinha otomana, sob o comando de Kemal Reis, para a Espanha a fim de salvar os judeus que foram expulsos. Logo depois, em 1497, os judeus portugueses também emigraram para a Turquia, como resultado do decreto português que determinava a conversão obrigatória.

A oferta de refúgio do sultão Bayezid II deu nova esperança aos sefarditas perseguidos. Desde 1492, o sultão ordenou aos governadores das províncias do Império Otomano “não recusar a entrada dos judeus e nem lhes causar dificuldades, mas recebê-los cordialmente”.

Emanual Aboab, um estudioso judeu português, atribui a Bayezid II a famosa observação de que “o monarca católico Fernando foi erroneamente considerado sábio, pois empobreceu a Espanha com a expulsão dos judeus e enriqueceu a Turquia”.

Assim, dezenas de milhares de judeus ibéricos chegaram aos territórios otomanos. Como tudo o que era exigido deles era o pagamento de um imposto comunitário e o reconhecimento da superioridade do Islã, o império tornou-se um refúgio para esses judeus expulsos.

Por sua vez, os judeus trouxeram benefícios ao Império Otomano, que estava no início de seu período de “ascensão”, 39 anos após a conquista de Constantinopla.

Moris Levi, uma figura proeminente da comunidade judaica da Turquia, diz que a coisa mais importante que os judeus introduziram no Império Otomano foi a imprensa, embora lamente que ela não tenha florescido.

Ele diz que os judeus também trouxeram outro ganho para os otomanos, que foi um ponto de vista ocidentalizado. “Os otomanos eram um império global, um estado forte e precisavam estar abertos a todas as visões”, observou. Levi afirma que a comunidade judaica foi um ativo valioso em termos de ofícios e ocupações que tinham.

Os judeus sefarditas foram autorizados a se estabelecer nas cidades mais ricas do império, especialmente na Rumélia (as províncias europeias, cidades como Constantinopla, Sarajevo, Salónica, Adrianópolis e Nicópolis), oeste e norte da Anatólia (Bursa, Aydın, Tokat e Amasya) , mas também nas regiões costeiras do Mediterrâneo (Jerusalém, Safed, Damasco e Egito). Izmir não foi colonizada por judeus espanhóis até mais tarde.

Por cerca de 500 anos após a expulsão, a prosperidade e a criatividade dos judeus otomanos rivalizaram com as da Idade de Ouro da Espanha. Quatro cidades do Império Otomano: Istambul, Izmir, Safed e Salônica tornaram-se os grandes centros dos judeus sefarditas. Desde o início do século XVI, a comunidade judaica no Império Otomano tornou-se a maior do mundo.

Essas congregações mantiveram zelosamente sua independência e individualidade. Cada kahal (corpo comunitário) tinha sua própria sinagoga, rabino, professor, talmud torá, cḥevra kaddisha, instituições de assistência social (hekdeshim) e várias sociedades, como gemilut ḥassadim (“sociedade benevolente”), bikkur ḥolim (“visita de doentes”) e sociedades de apoio às yeshivot e, na maioria dos casos, eles também tinham um beit din.

Além disso, os assuntos seculares eram tratados por um grupo de funcionários chamados maʿamad. A maioria dessas pessoas era de empresários importantes. Eles eram eleitos na presença de todos os contribuintes do kahal e administravam seus assuntos de acordo com acordos estabelecidos. Esses líderes eram responsáveis pelo registro dos membros da comunidade, pela imposição e cobrança de impostos e sua transferência para as autoridades otomanas.

Outro fenômeno significativo que contribuiu para a segurança da comunidade judaica foi o ativismo dos judeus da corte, especialmente os médicos. Durante o século XVI, os médicos mais importantes da corte eram os membros da família Hamon, José e seu filho Moisés de Granada. A maioria dos médicos da corte eram judeus. A diplomacia otomana era frequentemente realizada por judeus.

Joseph Nasi, nomeado Duque de Naxos, era o ex-português marrano João Miques. Outro marrano português, Alvaro Mandes (aliás Salomon ibn Ya’ish) foi nomeado duque de Mytilene em troca de seus serviços diplomáticos ao sultão. Salamon ben Nathan Eskenazi organizou os primeiros laços diplomáticos com o Império Britânico.

No livre Império Otomano, a literatura judaica floresceu. Joseph Caro compilou o Shulchan Aruch. Shlomo HaLevi Alkabez compôs o Lechá Dodi, um hino que dá as boas-vindas ao Shabat, de acordo com o ritual sefardita e ashkenazi. Jacob Culi começou a escrever o famoso MeAm Loez. O rabino Abraham ben Isaac Assa ficou conhecido como o pai da literatura ladina.

Na Turquia também surgiu o pseudomessias Zvi Shabbatai. Zvi Sabattai desenvolveu um comportamento errático dado a fantasias messiânicas e atos bizarros. Ao voltar para o país após perambular pelo mundo se autodenominando Messias, Shabbatai acabou sendo pego pelas autoridades otomanas e quando lhe foi dada a escolha entre a morte ou a conversão, ele optou pela última.

Até o final do século XVI, os judeus no Império Otomano desfrutaram de uma prosperidade notável. O império estava se expandindo rapidamente e a demanda econômica aumentava na mesma proporção. Assim, a população judaica pôde facilmente entrar no comércio com a Europa cristã.

No entanto, a história dos judeus na Turquia nos séculos 18 e 19 é principalmente uma crônica de declínio em influência e poder; eles perderam suas posições influentes no comércio principalmente para os gregos, que foram capazes de “capitalizar seus laços religiosos-culturais com o Ocidente”.

Nessa época, o estudo da Torá diminuiu e o padrão cultural chegou a um ponto tão baixo que a maioria não conseguia nem ler a Bíblia. Foi por esta razão que os livros passaram a ser publicados em espanhol e ladino.

Com o declínio do Império, os judeus de certas regiões, primariamente a Rumélia, se viram sob o domínio cristão. Os judeus bósnios, por exemplo, ficaram sob o domínio austro-húngaro após a ocupação da região em 1878, a independência da Grécia, Bulgária e Sérvia reduziu ainda mais o número de judeus dentro das fronteiras do Império Otomano.

A Primeira Guerra Mundial pôs fim à glória do Império Otomano. Em seu lugar surgiu a jovem República Turca. Mustafa Kemal Ataturk foi eleito presidente, o califado foi abolido e uma constituição secular foi adotada. Entretanto, a Turquia ainda concedia direitos às três principais minorias religiosas não muçulmanas e permitiu que elas continuassem com suas próprias escolas, instituições sociais e fundos.

Durante os trágicos dias da Segunda Guerra Mundial, a Turquia conseguiu manter sua neutralidade. Já em 1933, Ataturk convidou vários professores judeus alemães proeminentes a fugir da Alemanha nazista e lá se estabelecer. Antes e durante os anos de guerra, esses estudiosos contribuíram muito para o desenvolvimento do sistema universitário turco.

Nesse período, a Turquia serviu de passagem segura para muitos judeus que fugiam dos horrores do nazismo. Vários diplomatas turcos, embaixadores e cônsules despenderam todos os seus esforços para salvar do Holocausto os judeus turcos em vários países, e conseguiram.

Infelizmente, com o tempo, o antissemitismo na mídia e nos livros veio a criar uma situação na qual jovens turcos educados formaram opiniões negativas contra os judeus e Israel. Além disso, a violência contra os judeus também começou a ocorrer. Em 2009, vários estudantes judeus sofreram abuso verbal e ataques físicos.

Em 6 de setembro de 1986, terroristas árabes mataram a tiros 22 fiéis judeus e feriram 6 durante os cultos de Shabat na sinagoga Neve Shalom, em Istambul. Este ataque foi atribuído ao militante palestino Abu Nidal.

A Turquia tinha mais de 100.000 judeus na década de 1930, incluindo muitos que fugiram dos nazistas. O número diminuiu com a emigração no final da década de 1940 para Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos.

A atmosfera negativa no país em relação aos judeus e Israel se intensificou com a ascensão do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan e foi agravada pelo incidente mortal da Flotilha de Gaza em 2010.

A plataforma governamental de Erdogan vem de uma ideologia islâmica estrita. Sentimentos antissemitas são comuns na Turquia, com o índice de antissemitismo da Liga Antidifamação Global de 2015 concluindo que 69% dos turcos possuem algum tipo de crença antissemita. Este valor é significativamente superior ao de outros países europeus e apenas ligeiramente inferior à média do Médio Oriente.

Hoje, estima-se que existam cerca de 20.000 judeus na Turquia, concentrados em Istambul e Izmir.

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