Significados do Judaísmo

A Beleza do Pessach de Scliar

06/04/2022
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Falemos dos judeus: pequeno grupo humano que viria a desempenhar um grande papel na história da humanidade.

Ao estudar um tema, às vezes nos encontramos com joias raras que queremos compartilhar da forma mais completa que conseguimos.

Assim, encontrei um texto de Moacyr Scliar sobre Pessach que, simplesmente, não tenho como editar sem perder sua beleza.

A solução que encontrei foi publicá-lo em minha linha do tempo em várias partes, para apresentar toda a sabedoria e poesia lá encontradas. Aí vai:

Esta mesa em torno a qual nos reunimos, esta mesa com as matzót e com as ervas amargas, esta mesa de Pessach com sua toalha imaculada, esta mesa não é uma mesa; é mágica embarcação com a qual navegamos pelas brumas do passado, em busca das memórias de nosso povo. A esta mesa sentemo-nos, pois.

Somos muitos, nesta noite. Somos os que estão e os que já se foram; somos os pais e os filhos, e somos também os nossos antepassados. Somos um povo inteiro, em torno a esta mesa. Aqui estamos, para celebrar, aqui estamos para dar testemunho.

Dar testemunho é a missão maior do judaísmo. Dar testemunho é distinguir entre a luz e as trevas, entre o justo e o injusto. É relembrar os tempos que passaram para que deles se extraia o presente a sua lição.

Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é o pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome – e muitos são os que têm fome, neste mundo em que vivemos – que venha e coma. Quem estiver necessitado – e muitos são os que amargam necessidades, neste mundo em que vivemos – que venha e celebre conosco o Pessach.

É o legado ético de nosso povo, a mensagem contida neste simples alimento, neste pão ázimo que o sustentou no deserto, e que o vem sustentando ao longo das gerações. É preciso ser justo e solidário, é preciso amparar o fraco e ajudar o desvalido.

O deserto que hoje temos de atravessar não é uma extensão de areia estéril, calcinada pelo sol implacável. É o deserto da desconfiança, da hostilidade, da alienação de seres humanos. Para esta travessia temos de nos munir das reservas morais que o judaísmo acumulou, das poucas e simples verdades que constituem a sabedoria do povo. Ama teu próximo como a ti mesmo. Reparte com ele teu pão. Convida-o para tua mesa. Ajuda-o a atravessar o deserto de sua existência.

Nossos filhos nos perguntam porque é diferente esta noite de todas as noites. Porque todas as noites comemos chametz e matzá, e esta noite somente matzá. Porque todas as noites comemos verduras diversas, e esta noite somente maror. Porque molhamos os alimentos duas vezes. Porque comemos reclinados.

Agradeço-lhes por perguntarem. Porque, se nos perguntam, não podemos esquecer; se indagam, não podemos ficar calados. Por suas vozes inocentes, filhos, fala a nossa consciência. Tuas vozes nos conduzem a verdade.

Por que esta noite e diferente de todas as noites, filhos? Porque nesta noite lembramos. Lembramos os que foram escravos no Egito, aqueles sobre cujo dorso estalava o látego do Faraó. Lembramos a fome, o cansaço, o suor, o sangue, as lagrimas. Lembramos o desamparo dos oprimidos diante da arrogância dos poderosos.

Lembramos com alívio: é o passado. Lembramos com tristeza: é o presente.

Ainda existem Faraós. Ainda existem escravos. Os Faraós modernos já não constroem pirâmides, mas sim estruturas de poder e impérios financeiros. Os Faraós modernos já não usam apenas o látego; submetem corações e mentes mediante técnicas sofisticadas.

Seus escravos se contam aos milhões, neste mundo em que vivemos. São os negros privados de seus direitos; os poetas que, em Cuba, não podem publicar seus versos; os imigrantes a quem, na Europa, está reservado o trabalho pesado e a hostilidade dos grupos fascistas; as mulheres e os jovens fanatizados pelo regime do Isis, os famélicos do Sahel e do nordeste brasileiro, as populações indígenas lentamente exterminadas em tantos lugares; os operários explorados e os camponeses sem terra.

Para estes, ainda não chegou o dia da travessia. Estes ainda não encontraram a sua Terra Prometida. Para eles, a vida ainda e amarga como o maror. É a eles também que lembramos nesta noite, filhos. Com eles repartimos, em imaginação, o nosso pedaço de matzá.

Não sejamos como o ingênuo, que ignora os dramas de seu mundo, não sejamos como o perverso, que os conhece, mas nada faz para mudar a situação.

Perguntem, filhos, perguntem tudo o que querem saber – a dúvida é o caminho para o conhecimento. Mas, quando se tornarem sábios, procurem usar a sabedoria em benefício dos outros. Repartam-na, como hoje repartimos nossa matzá, sigam o conselho de nossos sábios, e lembrem a saída do Egito, não só na noite de Pessach, mas todos os dias de vossas vidas.

Falemos deste povo, então. Falemos dos judeus: pequeno grupo humano que viria a desempenhar um grande papel na história da humanidade. Um povo inquieto. Um povo que não buscava o repouso, nem para si, nem para os outros povos.

Povo nômade, os hebreus deslocavam-se constantemente. E por isso não construíram grandes cidades, nem monumentos comparáveis às pirâmides. O que os hebreus levavam consigo, em suas migrações, era a sua tradição, era a palavra do Senhor, da qual eram guardiães; a palavra que deu origem ao livro sagrado, a Torá, seu grande legado para a humanidade.

De Abraão nasceu Isaac, de Isaac, Jacob, e de Jacob, José e seus irmãos. José, o vidente, que se tomou vizir do Faraó. Na terra de Goshen (A terra de Gósen é nomeada na Bíblia hebraica como o lugar no Egito dado aos hebreus pelo faraó) o povo judeu foi viver, e ali se multiplicaram como as estrelas no céu e os grãos de areia das praias do mar.

Mas então nuvens negras surgem neste céu tranquilo. Um novo Faraó reina no Egito; ele decreta: toda a criança judia, de sexo masculino, deve ser morta ao nascer.

Mas um menino escapa. O destino poupa-o para ser o libertador de seu povo: é Moshe, que a filha do Faraó salva. Moshe, Príncipe do Egito. Moshe, poderoso entre os poderosos. Há um instante na vida de cada homem em que ele se vê diante de seu destino. Este instante chegou para Moshe. Jogou sua sorte com a sorte do seu pobre, desprotegido povo.

É então que Deus lhe fala.

Não antes do gesto de coragem, mas depois; e como se a divindade só pudesse Se revelar depois que Moshe descobriu a si mesmo.

Este Deus estende Sua mão para Moshe, e acena-lhe com a promessa: terra e liberdade.E então, acompanhado de Arão, seu irmão que por ele falava, Moshe foi ter com o Faraó e disse: Deixa meu povo sair. Deixa meu povo sair. Era a primeira vez que ecoava esta frase no reduto do poder, mas não seria a última.

Nas masmorras dos romanos: deixa meu povo sair. Nos guetos medievais: deixa meu povo sair. Nos cárceres da Inquisição: deixa meu povo sair. Nas aldeias ameaçadas pelos pogroms: deixa meu povo sair. Na Alemanha nazista: deixa meu povo sair. Na Rússia, na Síria, na Etiópia: deixa meu povo sair.

Moacyr Scliar

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