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O Deus da Carnificina

25/08/2021
O Deus da Carnificina | Jornal da Orla

O sucesso de O Deus da Carnificina provavelmente se deve a esta equação: uma trama simples somada a uma catarse de inacreditável descontrole. O livro desenvolve-se todo num único ambiente com apenas quatro personagens. Como um voyeur, o leitor comodamente se torna espectador da catástrofe alheia, contemplando a progressiva discussão de dois casais a respeito da briga ocorrida entre seus filhos. 

 

O livro prontamente apresenta os personagens (casais Houllié e Reille) e o cenário (apartamento dos Houllié). Frente a frente, os quatro adotam um clima de cordialidade e tolerância para resolver os efeitos da agressão que o filho dos Reille projetou sobre o filho dos Houllié. Tudo anda bem de início, com os casais em elevado e adulto espírito para dirimir a questão; porém, na medida em que a conversa avança e os pequenos ódios se revelam, a civilidade se degenera e o caos passa a reinar. 

 

Divertidíssimo, ágil e inteligente, o livro desnuda a hipocrisia social e cutuca comicamente uma classe que aparenta civilidade e refino, mas que carrega muito rancor, medo, ódio e preconceitos. 

 

Motivos para ler:

 

1- Yasmina Reza, escritora e dramaturga francesa, talvez não imaginasse a proporção que sua peça de teatro ganharia. Sucesso merecido: ela conseguiu editar um mini-tratado sobre a mediocridade, o ridículo e a falência dos valores humanos; 

 

2- A dica de ouro vai para a adaptação cinematográfica de mesmo nome. Dirigido por Polanski e com um elenco estrelado que esbanja talento (Christoph Waltz, Kate Winslet, Jodie Foster e John Reilly), o filme venceu com louvor o desafio de se desenrolar integralmente entre quatro paredes. É imperdível; 

 

3- O livro evoca um tema atual: quantas pessoas perfeitamente educadas/instruídas que você conhece (ou julgava conhecer) passaram a envergar discursos de ódio, preconceitos, terraplanismos e conspirações de todo gênero, ou voltaram-se à defesa de pressupostos autoritários em completa desconexão com a realidade? Seja por questões pessoais, profissionais ou político-ideológicas, as pessoas só precisam de um bode expiatório para extravasar o pior de suas sombrias entranhas. Sem autocontenção, os monstros caminham e bafejam entre nós. O alerta de Gramsci é mais presente do que nunca: "O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros".


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