O brasileiro se acomodou a chamar de “superação” toda conquista de um atleta numa situação em que tinha tudo para dar errado e deu certo. É um cenário completamente diferente da vitória incontestável da nadadora Ana Marcela da Cunha na Olimpíada de Tóquio. A medalha de ouro é resultado do funcionamento praticamente impecável de uma engrenagem, cuja principal peça é a atleta.
Ana Marcela é a melhor nadadora de águas abertas nos últimos dez anos. Colecionadora de medalhas e destruidora de recordes. Entre as conquistas, cinco títulos mundiais, 44 campeonatos brasileiros e até mesmo torneios nacionais de outros países. A medalha dourada veio coroar uma trajetória de sucesso.
Na água desde sempre
Filha de atletas (da ex-ginasta Ana Patrícia e do ex-nadador George), Ana Marcela nasceu em Salvador. Aprendeu a nadar aos 2 anos e começou a competir em provas em piscinas aos 6. Aos 12, estreou em provas marítimas e, aos 14, já estava na Seleção Brasileira adulta. Em 2007, aos 15, mudou-se para Santos, para integrar a equipe da Universidade Santa Cecília (Unisanta) —e isso fez toda a diferença.
Um talento nato, foi na Unisanta (instituição já reconhecida por oferecer grande estrutura e tradição em revelar talentos) que a atleta conseguiu as condições ideias para desenvolver toda sua potencialidade.
Em 2008, aos 16 anos, participou da primeira Olimpíada, em Pequim, ficando em quinto lugar. Em 2011, uma decepção que serviu como aprendizado e motivação: apesar de ser a melhor atleta do ano, colecionando praticamente todos os títulos, não conseguiu se classificar para disputar a Olimpíada de Londres 2012. Ficou em 11º lugar (garantiam vaga as 10 primeiras), terminando a seletiva disputada em Xangai (China), com o cabalístico tempo de 2h22min22seg02cent.
Na Olimpíada de 2016, no Rio, a nadadora ficou em 10º lugar, apesar de continuar tendo bons resultados em outras competições internacionais. Faltava o ouro olímpico e ele veio na terça-feira (3), quando ela completou o percurso de 10 quilômetros em 1h59m33s.
Biotipo de campeã
Como poucos, a atleta consegue obter o máximo de performance de seu biotipo: 1,64 metros de altura e peso em torno 65 kg, estrutura esquelética extremamente sólida, envergadura e força nas braçadas e movimento de pernas. Seu índice de gordura corporal fica em torno de 18%, o que lhe propicia isolamento térmico e boa flutuação.
Trabalho consistente
A consagração olímpica de Ana Marcela Cunha não é fruto de um milagre, mas resultado de um trabalho consistente, no qual se somam o protagonismo da atleta e uma boa retaguarda que inclui nutricionista, psicóloga, fisioterapeuta e técnico.
Na fase final do treinamento para a Olimpíada, Ana Marcela foi para o Centro de Alto Rendimento de Sierra Nevada, no sul da Espanha, a 2.320 metros acima do nível do mar. Foi onde melhorou os índices de hemoglobina e hemacrócitos (o que melhora a oxigenação sanguínea) e aumentou a frequência de braçadas de 36 para 38 braçadas por minuto.
Sai da frente!
Ana Marcela Cunha foi impecável na prova olímpica. As atletas ficaram para trás e até mesmo um peixe da espécie kohada (primo da sardinha) teve que sair da frente para não ser atropelado pela atleta. Aliás, peixe ótima para sushi — um dos pratos prediletos de Ana Marcela.
Foco e fé
As pessoas próximas relatam que Ana Marcela tem personalidade forte, extremamente disciplinada e exigente consigo mesma. Nos treinos, chega a nadar 9 quilômetros por dia, mas os treinamentos com menor distância não são menos castigantes. “Dias de luta, dias de glória”, como dizem os versos de uma letra da música do Charlei Brown Júnior tatuados no bícepes esquerdo da atleta — uma das diversas tatuagens que ela exibe pelo corpo: cavalo marinho (símbolo da Unisanta, coroa, argolas olímpicas, golfinho, estrela, família Flintstones…
O equilíbrio emocional vem da certeza de estar cercada por bons profissionais e também do apoio dos pais e da namorada, Maria Clara —que gritou tanto ao comemorar a vitória que os vizinhos chamaram a polícia para saber se havia acontecido algum problema.
A conquista do ouro olímpico é o ápice da carreira de Ana Marcela Cunha —até o momento. A atleta quer mais: “Ser campeã olímpica é muito importante, mas ainda não fui campeã mundial nos 10 km. Então, saio daqui querendo mais para o ano que vem”.