Esta coluna, não raras vezes, debruçou-se sobre romances vividos no ambiente rural profundo e suas típicas aflições: a miséria, a exploração do homem pelo homem, a violência. É um gênero bastante explorado e nunca gasto, e algumas – talvez as maiores – grandes obras brasileiras se acomodam exatamente nessa chave literária. Mas as agruras de se viver num país desigual e mal resolvido com seu passado também subvertem a vida na cidade, ocasionando severa violência urbana. Um assalto ocorrido no cenário urbano paulistano da década de 70 foi o enredo escolhido por Cony para erguer este seu singular livro.
A noite do massacre é um veloz thriller que principia apresentando a vida luxuosa de Marcelo e Sílvia, um casal de alta sociedade paulistana. Logo se vê que o manto de excentricidades se presta a esconder a falta de afeto e a falência das relações familiares. Entrecortando os curtos capítulos do livro, o leitor também é apresentado ao grupo organizado de João Sereno, um mestre do ofício: seus roubos são bem planejados, quase sem uso de violência, levados em tom cordial e profissional. Os capítulos sobre o casal e os assaltantes vão paralelamente se revezando, até que se encontram. E então começará a noite mais difícil de suas vidas.
A temática central é a violência, mas ela não causará perplexidades ao leitor: a condução do enredo pela lente excêntrica (às vezes surreal) das vítimas e pela curiosa ótica cavalheiresca do líder dos assaltantes é espetacular. Todo o evento desnuda a hipocrisia dos envolvidos: as mulheres insatisfeitas que não compreendem a própria infelicidade, a decadência, a indiferença. O inacreditável desfecho coroa o panorama de absurdos.
Um livro ágil, escrito por um dos escritores brasileiros mais respeitados e num estilo paradoxalmente leve-pesado, tenso-divertido. Recomendamos: é coisa de mestre.
Motivos para ler:
1– Carlos Heitor Cony é membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor de prêmios literários consagrados; dentre eles, quatro Jabutis e o Machado de Assis pelo conjunto da obra. Além de romancista, é conhecido por ser um cronista de mão cheia, com textos veiculados em diversos jornais do país. Um craque;
2– É curioso notar como o imaginário sobre a high society se retroalimenta: seria como, a partir de determinado ponto, fosse obrigatório se comportar de determinada maneira entre os seus e perante os outros. As novelas brasileiras imortalizaram o estilo: gente que se veste com requinte para simplesmente circular dentro da própria casa, empregados funcionando como se a casa fosse um luxuoso hotel, as manias afetadas e todo o empastelamento característico. E a incontornável breguice;
3– O livro é uma vertigem do começo ao fim. O incidente e suas decorrências sobre todos os personagens irão arrebatar o leitor. Alguns dirão que determinadas cenas poderiam ser suavizadas. Esquecem-se que escrever também é incomodar. A vida não é (só) um lindo e violáceo pôr do sol. Há quem escreva para desassossegar. Quem bom que é assim.
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