Escritores e artistas em geral não costumam revelar qual de suas obras é a preferida. Quando confrontados a respeito, afeiçoam-se ao discurso do “não existe filho preferido, cada um é especial” para escapar desse questionamento. Mas não Jorge Amado. Para o baiano, seu romance favorito é Tenda dos Milagres.
Acomodados no território do Pelourinho, homens e mulheres erguem suas oficinas e tendas para laborarem seus ofícios, seus trabalhos, suas artes. Mestres que, reunidos numa espécie de universidade popular, riscam milagres a óleo, escrevem literatura do cordel, ensinam a luta-balé da capoeira, entalham a madeira, acessam o outro mundo por místicos rituais. Na Tenda dos Milagres tudo pode acontecer e acontece.
Na ladeira do Tabuão fica a reitoria dessa grande universidade livre: é a Tenda dos Milagres do grande herói deste romance, Pedro Archanjo (†1.868 – 1943). Dedicado, leu muito, leu tudo, e escreveu sobre o problema racial para combater o racismo científico e sistêmico da época. Morreu como um ilustre para sua gente e um desconhecido para o mundo, até que um Prêmio Nobel de Ciências estadunidense cita efusivamente o seu trabalho. A fama, tardia e post mortem, enfim chega à Tenda dos Milagres.
Um belíssimo romance sobre resistência, identidade, valor cultural e liberdade.
Motivos para ler:
1– Jorge Amado é uma entidade cosmopolita. Traduzido em 80 países, multipremiado, é o maior escritor brasileiro mundo afora – perde apenas para Paulo Coelho, mas só na vendagem, nunca na qualidade. Foi o brasileiro que mais chegou perto de ganhar o Nobel de Literatura, estória documentada em bela troca de cartas entre os amigos Jorge e José Saramago. O Nobel ficou com José, e não faz mal: esses dois gênios só fizeram enaltecer a língua portuguesa. A foto que estampa esta coluna traz os amigos Jorge e José na boa companhia do irrepetível Caetano: os bons se atraem;
2– Vários personagens foram inspirados na vida real: o médico Nilo Argolo, que instituía o racismo com ares científicos ao colocar negros e mestiços como “raça inferior” e “criminosos de nascença”, foi baseado no médico Nina Rodrigues, que escreveu livros nesse vergonhoso tom. Pedrito foi inspirado no famoso delegado Gordilho, que perseguia e estourava candomblés. Preconceitos seculares e ainda vivos;
3– No fim, Mestre Pedro Archanjo escreveu com um propósito prático: defender sua gente do diário e violento extermínio. Candomblés eram invadidos, pais de santos eram presos, festas encantadas eram reprimidas. Vivia-se uma anacrônica (e sempre muito brega) cruzada ideológico-conservadora pelos “bons costumes”, como se fosse papel do Estado se preocupar com isso. Tenda dos Milagres é um libelo pela liberdade.
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