É com muita felicidade que esta coluna abre suas cortinas para Maria Valéria Rezende. A uma porque se trata de escritora edificada, com um universo particular tão rico que só poderia resultar em literatura do melhor nível. A duas – e não há jeito nem forma, somos todos bairristas nesta faixa de areia à beira do Atlântico – porque Maria Valéria é nascida e criada em Santos. Viveu aqui até seus 18 anos. Depois, ganhou o mundo.
Vasto mundo foi reeditado em 2015 pela Alfaguara, editora top de linha em todo o mundo, o que bem enuncia o prestígio da autora. Não por acaso. Sem favor algum, Vasto Mundo é uma maravilha. Com pequenas narrativas que se imbricam umas nas outras, vai-se desenhando a vida na vila de Farinhada. O originalíssimo narrador é o chão, o solo seco sobre o qual se ergueu Farinhada, que tudo sabe de todos. O livro se divide em três partes, cada qual prefaciada pela Voz do Chão: na primeira parte o chão apresenta seus viventes. Na segunda, expressa a dor ao vê-los partir. Na terceira, o chão conta as lendas encantadas de um povo.
Farinhada tem muita coisa. Tem mulheres fortes: Maria Raimunda, que ergueu sua própria guerra; Mocinha, que ao invés de sucumbir de amor, energizou-se; dona Eulália, que, longe do marido, resolveu as injustiças do povoado. Tem o Padre Franz, que, ao contrário de seus antecessores, não usou a vila como ponto de passagem: assumiu a paróquia por amor. Algumas cenas são tão tristes que enternecem. Num dos capítulos mais bonitos, Zefinha, professora num ambiente de analfabetos, escreve e lê as cartas que chegam e que vão. E resolve mentir: não suportando mais dar notícias ruins, suaviza ao máximo as dores de sua gente
Um livro escrito por uma talentosa e sensível santista. Uma obra do tipo imperdível.
Motivos para ler:
1– Maria Valeria Rezende descobriu sua vocação religiosa e entrou para a Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho. Dedicada à educação popular, trabalhou no Brasil e no exterior até se radicar no Nordeste rural. Vive em João Pessoa. Foi agraciada duas vezes com o festejado Prêmio Jabuti, dentre outras condecorações. Perceba como é vasto o mundo de Maria Valéria Rezende. Um orgulho para a cidade de Santos. Leia mulheres!;
2– Vasto Mundo enriqueceu ainda mais um gênero muitíssimo brasileiro: a literatura dos profundos rincões rurais. Com muita beleza e ternura, mas sem descurar da dureza da vida, o livro tece lindamente o viver de um povo que parece pulsar como uma grande família;
3– A autora é uma inspiração. Resolveu, aos 60 anos, estrear na literatura. Vasto Mundo foi seu primeiro romance, recebendo uma estupenda reedição da Alfaguara – nossa editora favorita, aliás. Tornou-se um sucesso de crítica. Não se pode dizer que sua vida começou aos 60; afinal, já tinha feito muita coisa até ali, mas iniciar uma trajetória diferente e “vencer” é um feito notável. Com José Saramago, sempre ele, também foi assim: uma carreira tardia, iniciada aos 50, que resultou num Prêmio Nobel. Bons exemplos.
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