Desonra recebeu o título de Desgraça noutros países de língua portuguesa. Seja como for, será esta a tortuosa estrada que David Lurie percorrerá neste livro: a implosão do seu mundo conformado e a confrontação com a realidade crua de um país em convulsão social.
O romance principia com o retrato da vida medíocre de Lurie: um professor desinteressado que se julga feliz por se encontrar semanalmente com uma jovem prostituta. É quando esta não mais o atende que Lurie inicia o relacionamento assedioso com uma aluna 30 anos mais nova, desencadeando um processo disciplinar na Universidade. O estilo de Coetzee, sem floreios românticos ou ostentações poéticas, escancara o ridículo em uma fala da ex-mulher de Lurie: “Você tem quanto? 52? Acha que uma menina tem prazer de ir pra cama com um homem de sua idade? Acha que ela gosta de ficar olhando pra você?”. Visceral e no ponto, ao contrário de outros escritores (Nabokov em Lolita e Benedetti com A Trégua) que romantizaram e inventaram “beleza” sobre relacionamentos nada saudáveis dessa natureza.
O romance ganha fôlego na metade final, quando Lurie “foge” para a interiorana cidade em que mora sua filha. Não cabe aqui revelar os terrores, as perturbações e as desventuras que atingirão os personagens, mas convém ler o livro com os olhos no seu contexto histórico: uma África do Sul pós-apartheid, com uma sociedade ainda claudicante em função do longo período de colonialismo, ódio e segregação racial.
Desonra perturba, comove, confronta, questiona, causa perplexidade, abre espaço para a emissão de juízos e ficará na memória para sempre. Enfim, tudo o que a mais alta literatura pode proporcionar. Aproveite.
Motivos para ler:
1– Desonra é um clássico. J.M. Coetzee foi o primeiro escritor agraciado duas vezes com o prestigiado Man Booker Prize. A coroação definitiva veio em 2003 com o Prêmio Nobel de Literatura;
2– O filme Desonra (2008) é um espetáculo. É a mais fiel adaptação cinematográfica de um livro que já tivemos oportunidade de ver. Mais: a película conta com o talentosíssimo John Malkovich no papel principal, o que sempre é um show à parte. Altamente recomendado;
3– Desonra é um daqueles raros exemplos que conseguem fundir a escrita curta com a densidade pesadíssima. Os períodos de Coetzee são contidos, a linguagem é crua, o estilo é econômico do início ao fim.
É notável como o autor consegue ser profundo com poucas palavras. O segredo, certamente, é que nenhuma palavra está a mais ou fora de lugar, todas têm vida e propósito. Um pequeno grande livro. Aprendamos, já que o discurso sintético pode ser muito útil na nossa vida cotidiana.
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