A colonização britânica na África deixou marcas profundas cujas consequências ecoam até os dias de hoje. Obras como este longa O Que Ficou Para Trás, projeto financiado pela NETFLIX, que retrata como a invasão cultural, social e territorial pode alterar profundamente os povos colonizados, onde por muito tempo sofrem com constantes disputas de poder, repleto de conflitos armados que forçam por muitas vezes, a fuga de seus habitantes daquele local à procura de uma vida melhor. Fora de sua terra natal, a situação social e econômica aliada ao conflito cultural é mais uma etapa do terror sofrido por imigrantes e refugiados sobreviventes, sendo que os conhecimentos desses elementos seja parte crucial para entender a força deste filme, o qual tem a coragem de não deixar sua mensagem nas entrelinhas e sim ao jogar na cara do público os problemas sociais vividos por esse povo, sem deixar de lado os eficientes sustos.
No filme, um casal de refugiados faz uma fuga angustiante do Sudão do Sul, devastado pela guerra, lutando para se ajustar à sua nova vida em uma cidade inglesa. O que eles não contavam é que essa cidade possui um terrível mal escondido sob a superfície, esperando apenas o momento certo para ascender. O diretor estreante Remi Weekes utiliza o terror como estratégia para gerar empatia, onde no meio daquela angústia e medo vivido pelos protagonistas, se esconde um silencioso grito de socorro enviado ao mundo. Usando a conhecida estrutura de casa mal assombrada, o diretor foge de alguns clichês abordando temas como trauma, culpa, perda e preconceito de forma bastante eficiente aliado aos seus recursos cinematográficos que são belíssimos, como os momentos de divagação e ilusão do protagonista e ao criar tensão mesmo fora do ambiente da casa, representado por uma simples caminhada até uma clínica, onde as ruas acabam se tornando verdadeiros labirintos. O único ponto que me deixou descontente foi em relação ao enfrentamento final, que foge da abordagem e terror psicológico que o longa vinha mantendo ao explicitar de forma desnecessária o mal na casa.
O roteiro, acertadamente, conduz o passado do casal de forma econômica e contando muito pouco ao público o que de fato aconteceu na fuga de seu país, mas sem deixar de enaltecer o peso da dor que eles carregam, com diálogos bem pontuados e não expositivos, passando um bom tempo apenas construindo a relação entre os dois, o que é a chave para qualquer filme funcionar e que faz com que o público se importe e torça por eles.
Mostrando qualidade também em sua parte técnica, mesmo com um baixo orçamento, a fotografia do filme consegue trabalhar as profundas sombras de forma realmente assombrosa, ao passo que a trilha sonora é cuidadosa o suficiente para não ser intrusiva, mostrando que o filme faz muito com o pouquíssimo que tem sem deixar a tensão de lado por toda sua duração.
A atuação de Wunmi Mosaku, como a esposa, é intensa e evidencia o quanto a vida real as vezes é mais assustadora do que qualquer entidade sobrenatural. Outro destaque fica com o marido, vivido por Sope Dirisu que passa todo o pavor e emoção necessários a trama.
O Que Ficou Para Trás possui uma relevante e respeitosa abordagem socioeconômica utilizando o terror psicológico para retratar uma sociedade preconceituosa com os refugiados, surpreendendo com um terror que foge do convencional e utilizando o drama social de seus carismáticos protagonistas como combustível para um eficiente e assustador longa de terror, onde comprova que o mundo real pode ser mais assustador que qualquer obra de ficção.
Curiosidades: A parte espiritual do filme, que envolve as assombrações, foi inspirado a partir do conhecimento sobre a mitologia e o folclore africano.
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