Tanto faz: eis a expressão fundamental que sustenta o clássico pop O Estrangeiro, livro mais cultuado de Albert Camus. Mersault, o narrador da estória, possui uma personalidade curiosa, que combina uma aguda lucidez com uma profunda insensibilidade. Tudo isso já se nota no primeiro parágrafo, que aliás é uma das mais famosas aberturas da história da literatura: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.”
Daí em diante é uma catarse de acasos absurdos e trágicos. O livro é dividido em duas partes. Na Parte I Mersault comparece ao velório da mãe, cheio de sono, tédio e apatia. No dia seguinte vai ao cinema assistir a um filme de comédia com a namorada. Os dias seguem cheios de sol e praia até a ocorrência de um incidente dramático. E aí se inicia a fantástica Parte II, com o julgamento de Mersault conduzido por um juiz cristão alucinado e um promotor-vingador. O teatro judicial do absurdo se desenvolve com seus atores histriônicos e um resultado previamente definido. Mas nada que vá preocupar Mersault; afinal, tanto faz.
Os poucos personagens que completam o enredo valem cada pingo de tinta vertido para criá-los. Acompanham Mersault na Parte I e comparecem ao julgamento na Parte II. Compõem, junto com o narrador, a miríade de absurdos típica de Camus. Um livro enigmático, a começar pelo título. Chegamos ao fim inquietos com a indiferença do (anti)herói perante o amor, a amizade, a prisão, a vida e a morte. Há quem diga que o livro é uma espécie perversa de autoajuda às avessas; afinal, dirá Mersault que “todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida”. É divertido, é conflituoso, é imperdível.
Motivos para ler:
1 – O franco-argelino Albert Camus, honrado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1957, é um dos colossos de primeiro escalão da literatura mundial. Foi homem e testemunha de seu tempo e soube transformar tudo isso em ensaios e romances de qualidade ímpar. Fundou as bases de sua produção intelectual naquilo que se convencionou chamar de estética do absurdo, tão presente em O Estrangeiro;
2 – Os livros de Camus costumam engatar alguma espécie de metáfora. Em seu famoso A Peste, a doença que recai sobre os munícipes é uma metáfora da ocupação nazista na França. O Estrangeiro, por sua vez, traz o “show judicial”. Quem é da área do Direito irá facilmente reconhecer as tristes figuras do Direito Penal do Inimigo, do Direito Penal do autor subjulgando o Direito Penal do fato, da espetacularização do processo penal, do juiz alienado, do promotor que joga para a plateia e adora holofotes. Livro atualíssimo, portanto;
3 – O livro é pequeno, são 113 curtas páginas. Reserve uma tarde e devore. Vicie-se no mundo absurdo de Camus. Ou não. Tanto faz.