Na noite de segunda-feira (2/3/2020), os irmãos Letícia, 17, e Diego, 14, moradores do morro do São Bento, em Santos, já estavam deitados, checando suas redes sociais no celular, enquanto caía forte a chuva em toda a Baixada Santista. A casa, na encosta do morro, foi comprada com muito trabalho e suor pelo pai dos adolescentes, Alexandro Félix, que, naquela noite, cumpria expediente como porteiro no Centro da cidade.
Aos poucos, a família Félix retoma a rotina e até já consegue esboçar um sorriso
A primeira e repentina queda na energia elétrica da casa não foi o suficiente para alertar os jovens do perigo que estava por vir. Somente na sequência, um estrondo e a ausência definitiva da luz fez com que eles pulassem da cama e corressem para fora do imóvel. Parte do morro estava desmoronando.
“A gente sentiu a casa tremer. A luz apagou e ouvimos um barulho muito forte. Corremos pra rua e vimos tudo caindo”, conta a jovem com uma tranquilidade inacreditável, apesar de tudo o que viu e viveu. Aliás, uma semana após a tragédia que tirou a vida de cinco de seus vizinhos, a família Félix relata, como se estivesse ainda anestesiada, aquelas horas de desespero.
“Recebi uma ligação dos meus filhos, desesperados, contando que tudo estava desabando. Eu só queria saber se eles estavam bem”. E estavam, mas parte do imóvel foi atingida pelos destroços que desceram morro abaixo.
Na manhã de terça (3), após encerrar o expediente e pegar um ônibus com destino ao que restou de sua casa, Alexandro teve noção do ocorrido. “De lá de baixo eu olhava pra cima e não conseguia acreditar que não tinha mais nada no local onde meus vizinhos moravam”, lembra.
Impedidos de voltar para o imóvel, interditado pela Defesa Civil, pai e filhos tiveram que se dividir. Os adolescentes estão na casa da avó. Félix, no abrigo cedido pela prefeitura – uma creche recém-inaugurada no São Bento.
Entre uma conversa e outra, ele tenta cochilar sentado, recarregar as energias e estar pronto para mais uma noite de trabalho. É impossível dormir durante o dia em um local cheio de pessoas que estão longe do conforto de seus próprios lares. “Fora o calor. Na sala onde dormimos é quente demais”, confidencia Alexandro.
A creche Therezinha Calçada Bastos foi inaugurada em fevereiro, mas nem chegou a receber os alunos. Hoje, abriga 67 pessoas, que se acomodam em oito salas. A gestão do local faz inveja a qualquer grande empresa repleta de setores e hierarquias.
Não foi preciso impor muitas regras de convivência. Mulheres e crianças ficam em salas diferentes dos homens. Todos sabem como usar os banheiros de forma consciente, da necessidade de manter a limpeza das áreas comuns e o controle das muitas doações que chegam todos os dias.
Quem, assim como Alexandro, precisa trabalhar, tenta seguir vida normal. Após o café da manhã, servido das 8 às 10h, é hora de deixar os filhos na escola e partir para a labuta. A exemplo da primeira refeição do dia, as seguintes também têm horário marcado: almoço, das 13 às 15h; lanche, das 17h às 18h30. Somente o jantar se estende um pouco para que os que retornam no período da noite possam se alimentar antes de dormir.
Doações são organizadas por segmentos e disponibilizadas às famílias desabrigadas
Sidney é morador do São Bento e voluntário na organização do abrigo. Sua casa não foi atingida, mas ele não hesita em ajudar o próximo. “Acredito que ainda estaremos aqui pelos próximos 40 dias. Hoje, não nos falta nada”, conta, enquanto mostra o estoque – impecavelmente organizado – e as geladeiras cheias de pacotes de salsichas e frangos.
Parte do estoque de produtos não-perecíveis, que deve durar por cerca de 40 dias
As doações de não-perecíveis, como arroz, açúcar, leite, feijão e até calcinhas novas e absorventes femininos, devem ser suficientes para suprir as famílias nas próximas semanas. “Mas sempre estamos em busca de parceiros para conseguir o que é perecível, como pão para o café da manhã e itens de feira”, explica.
Alex Mãos de Tesoura visitou o abrigo para dar uma ‘levantada’ no visual de abrigados e voluntários
Dos que atuam na cozinha à separação de roupas, todos são voluntários. Há quem tenha largado o trabalho e oferece apoio de alguma forma. Como o barbeiro Alex Mãos de Tesoura. “Eu moro no canal 2, mas vim aqui no São Bento fazer cortes de cabelo e barba em quem está precisando. Há 15 anos realizo esse trabalho social”, explica o profissional.
Amigos como Alex são bem-vindos. A procura agora é por parceiros culturais. “Estamos correndo atrás de doações de brinquedos e do pessoal que faz teatro, pra apresentar peças para as crianças. Nossas portas são abertas e toda ajuda é aceita. Até igrejas podem vir fazer seus cultos aqui”, explica Sidney.
Diariamente, agentes de saúde, médico e psicólogo da rede pública se revezam no atendimento às vítimas. “Tudo o que solicitamos, a prefeitura nos atende, mandou médico, traz remédio. Aqui tem famílias com crianças muito pequenas e até um bebê de quatro meses que precisam desse cuidado especial”, diz Ney.
Muitas perguntas…
Para as famílias do São Bento que foram vitimadas pelas chuvas, o que irá acontecer, segundo relatam alguns, é uma incógnita. A expectativa é de que o auxílio-moradia comece a ser oferecido até o fim deste mês. Estado e Município se comprometeram em pagar um benefício (único) imediato de R$ 1 mil e outros R$ 600 (mensais) durante um ano.
Os moradores que eram proprietários de seus imóveis correm para reunir os documentos necessários para garantir o aluguel social. Mas há ainda dúvidas sobre o local para onde serão destinadas essas famílias. É o caso do Alexandro que, por entender que vivia em uma área de risco, guardou a escritura de sua casa em segurança.
“Se eu guardasse o documento em casa, teria perdido nesta tragédia. O que queremos saber é quando vai sair o apartamento que a prefeitura nos prometeu? Eu morava ali há 21 anos. Comprei aquela casa. O que vai acontecer? No momento, a gente não tem perspectiva de nada”, lamenta.
Santos tem 275 famílias desabrigadas. A Prefeitura quer antecipar repasses da União e do Estado para acelerar a construção de 598 moradias populares na cidade. Será necessário o repasse de R$ 17 milhões do governo estadual para que a construtora do Conjunto Tancredo Neves 3 antecipe 400 das 1120 unidades do complexo.
No Morro da Nova Cintra estão em construção 198 unidades do Conjunto Habitacional Santos R (fases 2 e 3), voltadas para a remoção das famílias que vivem em área de risco. A responsabilidade é também do governo do Estado, por meio da CDHU, com investimento de R$ 13,8 milhões.
Ainda não há previsão de quando as famílias poderão se mudar.