O cinema dinamarquês foi o queridinho de muitos cinéfilos e críticos no final da década de 90, muito devido ao movimento Dogma 95, que basicamente consistia em filmes ousados, pretensiosos e sem muito o que dizer. Ao começar a assistir Rainha de Copas, tive a leve impressão de estar acompanhando mais um exemplar de longas daquela década mas, aos poucos, o filme demonstrou ter camadas suficientes para se livrar de certas amarras de choque gratuito e apresentar um filme polêmico, maduro e impactante. Aqui, trata-se de uma história de moral complexa, que chega em boa hora, pois vivemos tempos onde tentar censurar livros e dizimar a cultura é algo normal. Não que alguém tenha que aceitar e ser cúmplice dessa situação, mas não apontar o dedo e tentar compreender o próximo, faz parte de nossa humanidade.
O filme é focado em Anne, uma advogada do direito das crianças e dos adolescentes. Acostumada a lidar com jovens complicados, ela não tem muitas dificuldades para estreitar laços com seu enteado Gustav, filho do primeiro casamento de seu marido Peter, que acaba de se mudar para sua casa. No entanto, a relação que deveria ser paternal se torna uma relação romântica, envolvendo Anne em uma situação complexa, arriscando a estabilidade tanto de sua vida pessoal quanto profissional. O filme é dirigido por May el-Toukhy (confesso que não vi nenhum de seus filmes), que opta por um caminho pouco usual em sua abordagem, com um olhar frio e rígido perante essa situação, porém apenas observando e nunca julgando, o que sempre acho válido pois isso deve ficar a cargo do público. A diretora apresenta aqui, o que os americanos chamam de "slow burn", com uma abordagem lenta que vai queimando aos poucos, mas que perde força em seu ato final, onde a diretora recua na complexidade de sua proposta inicial por uma opção mais segura, se assim posso dizer. Mesmo demonstrando sua força durante boa parte de sua duração, deixando o público bastante apreensivo com o desenrolar de sua história, este longa dinamarquês é destinado a um pequeno nicho específico de cinéfilos e reforço meu comentário sobre a importância dos cinemas de Santos ao trazerem um projeto desses para a cidade.
O roteiro é inteligente ao focar suas atenções em Anne, onde conhecemos suas frustrações, seus cuidado com as vítimas de abuso, suas inseguranças e principalmente, sua presença como mãe e esposa. E tudo isso, é construído muito bem onde acompanhamos os acontecimentos através de seu ponto de vista, gerando uma empatia do público, mesmo diante de uma postura imperdoável. A diretora demonstra um controle absoluto dos conflitos e contradições que gerará no espectador, onde por exemplo, em um determinado ponto do longa, nos obriga a fazer uma escolha, onde nos força a romper qualquer laço criado com a protagonista.
A atuação de Lindh, na pele do jovem Gustav é um grande ponto do filme, onde aborda um jovem forte e orgulhoso porém instável emocionalmente, dando um grande contraponto a atuação de Trine Dyrholm, forte e dominante em sua voz, enquanto seus olhos mostram medo e fragilidade.
Rainha de Copas é uma obra sensível sobre amadurecimento e com uma temática moralmente polêmica. Encerrando de maneira cruel, o filme é um convite a reflexão de nossos códigos morais, da facilidade em quebrá-los quando se torna conveniente e dos efeitos que isso gera as pessoas que estão ao nosso lado.
Curiosidades: Selecionado para a mostra Next, do Sundance Film Festival de 2019.