Sala de Ideias

2654 trabalhadores derrotaram US$ 4,3 milhões de dólares: esse é o número deste dia

30/04/2022
Andrea Renault

Guilherme Prado

Em 1992 Francis Fukuyama, diante de um muro de Berlim que acabara de cair, afirmava que o Capitalismo venceu. Era o “fim da história”. O que aconteceria a partir dali, já não seria história, mas apenas a difusão da democracia – fraca e de baixa intensidade – chamada liberal, e do modo de vida ocidental, que tem seu máximo expoente no estilo de vida dos EUA.

Em 1976, na Inglaterra, Margareth Thatcher falava em uma entrevista que “o problema do Socialismo era que, eventualmente, o governo ficava sem o dinheiro das pessoas”. Já nos EUA a classe média mal imaginava que, apesar de um crescimento econômico contínuo que viria, seguiria com o mesmo padrão de vida dos anos 1973. Esse era o exato momento da criminalização da organização dos trabalhadores e dos sindicatos pelo governo neoliberal de Nixon, que assim exclamava: “O Capitalismo funciona melhor do que soa, o Socialismo soa melhor do funciona.”

A luta de classes, o sonho de outra sociedade profundamente generosa e solidária estava acabado. Aos trabalhadores restava aceitar que éramos indivíduos-empresa em busca de nosso lugar dentro do dito “livre mercado”. Práticas de solidariedade eram recriminadas, o indivíduo era o centro e a comunidade não existia mais. Os economistas neoliberais faziam surgir a chamada “Teoria do Gotejamento”: esse conceito nos diz que as taças de champanhe dos ricos têm não só que encher – mas se possível transbordar, para que suas gotas de riqueza  nos ajudem a ter vidas melhores. Se isso era ruim, pelo menos não havia nenhum sistema que poderia fazer nada melhor pela maioria. Afinal o Socialismo “não deu certo”.

E veja como o capitalismo foi generoso: um CEO hoje recebe 351 vezes mais que um trabalhador comum nos EUA. Essa elite geralmente trabalha nos Oligopólios que o “libertário” Estado capitalista criou: Amazon, Walmart, Windows, Google, etc. Além disso, O 1% mais rico da nação mais livre do mundo possui 16 vezes mais que os 50% mais pobres. Em 2020, 37 milhões de pessoas estavam na linha da pobreza, 3,3 milhões a mais que em 2019. Talvez o capitalismo tenha sido ainda mais generoso com Jeff Bezos, dono da Amazon, que possui cerca de US$  170 bilhões. Mas, generoso mesmo foi com Elon Musk dono de mais de um trilhão de reais, personagem sem muito apreço pela democracia que gastou R$ 214 bilhões para comprar o Twitter. A título de comparação, a ONU pede míseros US$ 6 bi para que 42 milhões de pessoas não morram de fome.

Mas esse não são os números a se comemorar neste dia do trabalhador. O número a se comemorar é um muito mais simbólico: por uma votação de 2645 a 2131, foi fundado o primeiro sindicato da história em um Armazém da Amazon nos Estados Unidos, mesmo contra uma campanha de US$ 4.3 milhões da empresa. Esse dinheiro, ao invés de ter sido investido para melhoras de salários, para mitigar as dores nas costas e Lesões de esforço repetitivo (LER) de trabalhadores, para contratar mais pessoas para que haja uma pressão menor nos movimentos repetitivos que causam esses problemas, para suprir a falta de condições sanitárias, para reduzir as semanas de 60 horas de trabalho ou os turnos de 10 horas com horas extras obrigatórias, foram, ao invés, usados para o chamado “Union Busting”: métodos de sabotagem à formação de sindicatos.

Os Union Busters (sabotadores de sindicatos) são contratados, pois a “democracia” modelo do mundo não permite sindicatos como um direito sem antes haver uma votação onde os trabalhadores decidam que eles possam existir. Chris Smalls, negro trabalhador da Amazon de Statern Island, e seus camaradas, venceram sabotagens como fakenews, cartazes dentro da empresa dizendo que os benefícios dos trabalhadores piorariam com um “atravessador” no meio, acusações de roubar a empresa e até detenção por tentar dialogar com trabalhadores nas dependências do Armazém. O Golias de 4 milhões de dólares caiu para trabalhadores com táticas “raíz” de organização: lanches distribuídos de forma autogestionária para os trabalhadores no ponto de ônibus, muita conversa, mensagens escritas por refletores nas paredes da empresa e muita, muita luta. Sim, os trabalhadores que decidiram se unir derrotaram a empresa mais valiosa do mundo.

Não só isso, acenderam uma fagulha que está perto de virar incêndio: fundaram uma organização chamada Amazon Labor Union (ALU), criada também como crítica a incapacidade dos velhos sindicatos de organizarem os trabalhadores após 28 anos de Amazon. A ALU recebeu pelo menos 100 pedidos de filiação de vários outros estabelecimentos da empresa pelos EUA. Tudo isso apoiado por um Senador chamado Bernie Sanders, que disputou com Biden a candidatura democrata para a presidência, e a deputada Alexadria-Ocasio- Cortez. Ou seja, o feito teve apoio de um velhinho simpático preso nas lutas dos direitos civis nos anos 1960 e uma ex-garçonete do Bronx, que se reivindicam Socialistas democráticos. Sim, há quem fale em Socialismo nos EUA, e é cada vez mais gente.

Enquanto isso, a National Labor Relations Board (NLRB), uma agência federal que cuida dos direitos dos trabalhadores do campo privado, afirma que há um crescimento de 57% na entrada de petições para novos sindicatos. Algumas dessas petições foram vencedoras e permitiram a sindicalização de trabalhadores que servem um café com gosto de exploração todos os dias.  Os funcionários do Starbucks criaram 3 sindicatos com tática unificada em 9 de março, suas camisas diziam “Trabalhadores do Starbucks Unidos”.

 

Todos esse movimento sindical tem uma cara mais preta, mais ousada e “raíz” que o sindicalismo em crise. Isso é o que mostra o rosto de Chris Smalls, o primeiro presidente de um sindicato da empresa Amazon na história tem estilo rapper, solidário, radical e organizador dos trabalhadores. E além de tudo irreverente: Smalls agradeceu a Bezos por ter ido ao espaço com seu foguete, pois enquanto isso pôde ficar aqui em terra organizando trabalhadores e denunciando o que o magnata fazia no espaço sideral com o dinheiro que é deles.

O capitalismo venceu tanto assim? Com a crise que atrasa a necessária reinvenção de nossos sindicatos, no Brasil, os entregadores que nos salvaram na pandemia, avançaram a consciência e aderem à Economia Solidária. Não só reivindicam melhores condições como salários e banheiros para empresas como Ifood, mas também – cansados de esperar- criam cooperativas e associações tomando os meios de produção para si próprios. E isso acontece aqui em Santos também: os Ecociclistas Livres; da Cooperativa de Consumo e produção de alimentos sem veneno, sem atravessadores e sem exploração que tive o prazer de fundar; seguem dizendo que o Capitalismo não soa nem funciona bem, e conseguem melhores resultados do que se tivessem um patrão.

Hoje, 30 anos após a frase de Fukuyama e 46 da de Thatcher, o que vemos é que o Capitalismo pôde produzir uma sociedade onde o 1% mais rico fica com a riqueza dos outros 99%, combinando isso a um planeta ambientalmente destruído. Isso provavelmente nos diz que só e apenas os trabalhadores, unidos novamente, podem oferecer uma alternativa generosa e de salvação da humanidade: ela ainda é chamada pelo nome – para alguns arcaico – de Socialismo. Aliás, com o prefixo ‘Eco”na frente, como nós, trabalhadores associados do Livres, gostamos de falar. Ecosalve a todos os trabalhadores: temos 2645 motivos para comemorar!

*Guilherme Prado é mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, roteirista e apresentador do podcast Vozes Livres, coordenador da Livres Coop e militante do PSOL Santos.

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