Comportamento

chr39A internet facilita a grosseriachr39, diz filósofa

21/11/2015
chr39A internet facilita a grosseriachr39, diz filósofa | Jornal da Orla
*por Marco Santana

A filósofa Marcia Tiburi tem se dedicado a tentar ajudar a entender o que se passa na cabeça das pessoas nos dias de hoje, em que o diálogo entre os discordantes é cada vez mais difícil e, o mais preocupante, se percebe com cada vez mais clareza manifestações de intolerância e violência. Nesta entrevista, a autora de “A arte de escrever para idiotas” e “Como conversar com um fascista” fala sobre patrulhamento de opiniões, indignação seletiva e o poder da internet na difusão destas ideias.

 
Após os atos terroristas em Paris, surgiram nas redes sociais críticas a pessoas que se solidarizavam com as vítimas, mas que estariam ignorando outras tragédias, como a em Minas Gerais e no Quênia. Você acredita que existe uma espécie de patrulhamento de manifestações?
Marcia Tiburi – Há certamente por parte de certos ativistas ou de cidadãos que tomam para si as questões coletivas. Não há nenhum problema em tomar para si as questões coletivas. Quando as pessoas dizem “Somos todos X”, elas querem dizer que são solidárias no sentido de que tomam como seu algo que não seria exatamente seu. Posso ficar tocado com os franceses, os quenianos, os indígenas ou Eduardo, morto aos 10 anos por um policial, dependendo de muitos fatores. Todos estão tocados por alguma coisa. Há, hoje em dia, e talvez sempre tenha havido, causas e injustiças para todos. Isso é uma ironia da democracia. Ao mesmo tempo, pode soar estarrecedor ver pessoas que não se importam com nada. Sobretudo quando essas pessoas vivem em contextos de privilégios. Fácil não se importar conforme os privilégios que se tenha. Paris toca muito mais quem a visitou ou tem amor à cultura francesa, a África é muito mais “nossa”, mas ela não é cultuada por quem detém os meios de produção da informação. Por um lado, a patrulha parece fazer bem ao “politicamente correto” que é uma verdadeira faca de dois gumes. Por outro, a patrulha (que está sempre a postos, por todos os lados) contribui também para o fim do diálogo e o fim do sentido da própria solidariedade. Isso porque, no ato de patrulhar, o patrulhador define o que é o certo e o errado e julga antes de entender o posicionamento do outro. No fundo da patrulha existe uma moral que prega o que é certo e o que é errado segundo seu ponto de vista sem dar chance de que o outro se expresse e que possa a vir melhorar sua expressão por meio de uma diálogo. A patrulha é policial e inevitavelmente violenta. A verdade da patrulha é que há necessidade de conter excessos, mas por outro lado, ela facilmente se transforma em tribunal e moralismo. O valor da solidariedade é deixado de lado em nome de uma disputa ideológica. Para complementar, como as pessoas escolhem com o que se indignar em termos morais e estéticos, com interesses ideológicos, então, acho que é bom também escutar a patrulha para ver se ela não tem um pingo de razão. 
 
A internet exacerba estes conflitos?
Tiburi – A internet, sobretudo na forma das redes sociais, administra um jogo de linguagem interessante no qual cada um é convidado a se expor no culto narcisista de nossos dias. Você pode se expor por meio de palavras e imagens como convém à lógica do espetáculo que nos rege. No jogo de poder e de empoderamento de si que a expressão promove, a guerra de todos contra todos está armada com a facilidade de que será tudo virtual. Há uma espécie de anti-política da ausência contra uma política da presença na qual tínhamos que bancar o que dizíamos e ter a coragem de dizê-lo de modo crítico e, apesar disso, civilizado. A internet facilita a grosseria, reduz o discurso à gritaria, enterra a possibilidade do diálogo que já não era fácil por outros meios. 
 
Você acredita que existe “indignação seletiva”?
Tiburi – A própria ideia da indignação implica essa seletividade. Nós nos indignamos a partir de algo que nos afeta. Não vou me sentir afetado por aquilo com o que não me identifico. Logo, podemos dizer que toda indignação é seletiva. Seria interessante pesquisar por que nos identificamos mais com a França do que com a África ou mesmo uma das favelas brasileiras. Preferimos olhar para a França? Ou preferem que olhemos para lá? Vivemos ainda na mera indignação, por isso, o que pensamos sobre uma questão, ou a emoção que sentimos diante de uma injustiça, é logo esquecido, é rapidamente deixado para trás. Em um contexto em que estamos ocupados apenas com nossas vidas produtivas e consumistas, não há tempo para pensar em questões coletivas, políticas, éticas, sociais. Por isso, o crescimento do fascismo, esse “fascismozinho” diário que se expressa em cada um, me parece bastante inevitável. Nossa educação, em termos de filosofia, sociologia e política, foi a mais precária. Para quem só conseguiu ser reconhecido como “consumidor” – e não como cidadão – a expressão política é casual e deriva de uma imitabilidade do discurso que ele pode comprar barato na televisão, nas revistas e jornais que administram sua ignorância. 
 
É possível dar algum conselho para quem quer se manifestar sobre este tipo de assunto, sem correr o risco de ser fascista ou burro?
Tiburi – Há algo muito importante a ser levado em conta na sociedade atual, uma sociedade cuja característica principal é a hipervalorização da imagem, junto com a valorização exacerbada da informação em seu sentido mais banalizado. A informação é fundamental, no entanto, ela foi rebaixada, ela foi desqualificada pelos próprios meios de comunicação a serviço dos donos do poder. Recebemos informação em profusão e não percebemos que ela é uma mercadoria que é produzida e vendida e, do mesmo modo, consumida pelas pessoas. Há informação por todo lado a preço baixo e nós também podemos vender as nossas nas redes sociais. Somos convidados a emitir informação, o que nos dá a sensação de que somos livres, de que vivemos num ambiente democrático. E de fato, há algo de maravilhoso no acesso aos meios da comunicação, mas há também, junto com a democracia exercida, um autoritarismo que só poderia ser evitado se soubéssemos que isso tudo faz parte de um jogo. O jogo da mídia, dos meios de comunicação de massa, que administra a informação regulando o que deve e não deve aparecer, o que deve ou não ser dito. O problema é que não somos livres para discernir porque não há uma mediação pela educação e pela cultura para entender o que os meios de comunicação nos transmitem. Ou melhor, nos vendem. Nos termos da mercadoria informação, pouca gente sabe o que está comprando.  Por outro lado devemos lutar e exercitar o direito à expressão. Esse direito não está livre do dever do respeito e do reconhecimento dos direitos humanos e dos direitos dos outros de um modo geral. Aquele a quem chamamos de fascista e de burro é o sujeito que perdeu esse respeito, porque também o respeito é uma postura que implica o arranjo entre a cognição e a ação por meio da sensibilidade. Isso quer dizer que vamos muito mal quando emitimos opiniões sem pensar no que dizemos, sem colocar à prova o que queremos dizer, sem ter elaborado os afetos que estão na base do que dizermos. É preciso também lembrar que dizer é fazer… ofendemos, humilhamos, maltratamos, fazemos sofrer por meio de palavras. Além disso, discursos, leis, notícias são feitas de palavras. O termo fascista e o termo burro, mesmo que sejam usados de modo coloquial, são duas categorias importantes para analisar as subjetividades que se desenvolvem nas mais diversas culturas. Podemos fazer uma análise histórica desses termos para encontrar uma intimidade curiosa entre o fascista e o burro, no sentido da personalidade autoritária fechada para o outro, para a diferença, em uma palavra, para a alteridade. O que está em jogo é a indisponibilidade para o outro. Daí a gente poder dizer que a burrice não é só uma categoria cognitiva, mas moral.