Nos protestos do dia 15, todos foram unânimes em condenar a corrupção. Nada mais justo, num cenário forrado de denúncias envolvendo políticos do cenário nacional. Mas e a “pequena” corrupção, aqueles deslizes praticados pelo cidadão comum?
Molhar a mão do guarda para escapar da multa, parar em fila dupla ou na vaga para deficientes “só um minutinho”, colar na prova, furtar o sinal de TV por assinatura, furar fila, comprar produtos falsificados ou de procedência duvidosa, sonegar impostos, usar carteira de estudante falsa para pagar meia-entrada, dirigir pelo acostamento, trafegar abaixo da velocidade permitida só onde tem fiscalização eletrônica, bater o ponto pelo colega de trabalho…
A lista de “pequenas” corrupções é imensa – provavelmente infinita! A maior parte das pessoas que as pratica não vê grande gravidade, pois seriam “inofensivas”. Pior: recorrem a argumentos estapafúrdios como “todo mundo rouba”, “o governo é corrupto, então vou mesmo sonegar imposto”, “se o ingresso fosse barato, ninguém falsificava a carteirinha”, e por aí vai…
Evidentemente, a corrupção do cidadão comum não é uma exclusividade brasileira. Mas em nosso país ela ganha contornos particulares, à medida que se confunde com o chamado “jeitinho”, termo que surgiu para designar a capacidade de improviso do brasileiro para resolver problemas, mas que descambou para a prática, pura e simples, da corrupção.
Dá para resolver?
Evidentemente, não é possível mudar o modo de agir de um povo inteiro num passe de mágica. Mas é possível adotar medidas que terão resultados a médio e longo (e bota longo nisso!) prazo.
A médio prazo, o aumento dos mecanismos de fiscalização e aplicação efetiva das punições. “Quando os heróis nacionais são corruptos e a corrupção não chega à imagem deles, é natural que o guarda da esquina ache que nada vai acontecer com ele”, argumenta o filósofo José Arthur Giannotti, professor emérito da USP.
O diretor executivo da Ong Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, reforça, ressaltando que, a rigor, pouco importa se, na sua essência, o indivíduo é honesto ou desonesto. “O que importa é que, se o sujeito for desonesto, um controle rígido deixa pouca margem para que aja desonestamente”, esclarece.
A longuíssimo prazo, mas cuja ação deve ser iniciada o quanto antes, investimentos maciços em educação.
O cruzamento dos dados do Índice de Percepção de Corrupção Mundial, da Transparência Internacional, com os do PISA (exame que avalia o desempenho de alunos de 15 e 16 anos de todo o planeta), indica que países com melhores índices de educação tendem a ter menores taxas de corrupção. Assim, no topo do ranking figuram países como Dinamarca e Nova Zelândia. Na base, Cazaquistão (140º). O Brasil se situa no meio da tabela.
“Mais educação” é muito vago. Que tipo de ensinamento está faltando? Cidadania, responde o professor de filosofia Clovis de Barros Filho, que escreveu o livro “Ética e vergonha na cara”, em parceria com o também filósofo Mário Sérgio Cortella. “As escolas reservam tempo para os conteúdos tradicionais, mas quase nada para cidadania. O aluno teve mais aula sobre organelas citoplasmáticas do que sobre regras de convivência. Precisamos tratar a ética com mais importância. Infelizmente, nem isso é possível no momento, porque nem professores suficientes há. É preciso criar condições para que isso aconteça. É preciso dar à criança condições de resistir a uma formação familiar torta, moralmente indigente e inaceitável”.
A origem
A burla sistemática da lei é tão antiga quanto a própria história do país. A historiadora Denise Moura, da Unesp, relata que, para atrair portugueses para povoar as novas terras, a Coroa fazia vistas grossas. “Era permissiva, deixava que trabalhassem aqui sem vigilância. Se não, ninguém viria”. Como na prática estes representantes da Corte lusitana tudo podiam, confundiu-se o cargo com o indivíduo. “E isso até hoje interfere na maneira como vemos os direitos e deveres das pessoas”, explica.
Ao analisar a sociedade brasileira na época colonial, no livro “Raízes do Brasil”, o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda destaca que era comum ignorar as leis. “Aos inimigos, a lei”, dizia-se. Assim, burlá-la era uma prova de amizade e confiança. Como o costume do cachimbo deixa a boca torta, o brasileiro desenvolveu uma propensão para preferir a informalidade. Assim, instituiu-se a preferência pelo atalho, em vez da via oficial.
Foi justamente por causa da ineficiência das instituições que a corrupção do cidadão comum criou raízes. Para escapar da burocracia e das penalidades, preferem-se caminhos paralelos. E o comportamento se dissemina pois a grande maioria da população acha esses escorregões “normais”.
O cidadão sente-se à vontade para praticar estes desvios de comportamento porque há impunidade no alto escalão (os grandes escândalos invariavelmente “acabam em pizza”). “Cria-se um clima para que isso se replique no cotidiano do cidadão comum e cria um ciclo vicioso”, explica a psicóloga Lizete Verillo, diretora da Ong Amarribo, representante no Brasil da Transparência Internacional.
Campanha
O Controladoria Geral da União (CGU) lançou uma campanha sobre o assunto e vem conseguindo muita repercussão. A página “Pequenas corrupções – Diga não” no Facebook recebeu, em apenas dois meses, 24 milhões de curtidas. Seria alentador o apoio à iniciativa. #sóquenão: no mesmo Facebook, a página “Pequenas corrupções – quais as suas?” convida o internauta a confessar seus deslizes. Tem apenas 61 curtidas e nenhuma “colaboração”. Desolado, o administrador da página postou: “Essa é a página mais mal sucedida do Facebook! Admitir seus deslizes no cotidiano é tarefa hercúlea!”