Comportamento

Coisas da Cidade

27/02/2015
Coisas da Cidade | Jornal da Orla
Para o santista, ir à cidade é ir ao Centro de Santos, região que concentra os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, órgãos federais e estaduais, empresas, restaurantes e um sem-número de prestadores de serviço. O comércio de rua, principalmente aquele considerado popular, é o forte da região central. É também inconstante, muitas portas se abrem e fecham em curtos espaços de tempo, mas caminhando por suas ruas é possível garimpar preciosidades que resistem aos modismos e à concorrência. Pelo menos, até hoje.
 
Você sabe onde encontrar um genuíno barbeiro, mestre na tesoura e navalha? Ou onde achar aquela louça que parece pintada à mão e vai fazer bonito em uma mesa de jantar? Quem sabe comprar ou mandar confeccionar um uniforme igualzinho ao que viu no filme ou na foto. Pode também encomendar um terno ou uma camisa sob medida, que cai como “uma luva”, capaz de esconder pequenas imperfeições do corpo. E se ainda tem um toca-discos, há um endereço certo para encontrar antigos LPs, que fascinam principalmente pela arte de suas capas.  
 
Hilário do Jabuca
O nome do salão já entrega o seu dono: Hilário Garcia Carvalho, 81 anos, é “figurinha” conhecida na cidade por sua paixão pelo Jabaquara Futebol Clube. Por sinal, o salão, na rua Martim Afonso, 20, é decorado com bandeiras, flâmulas, recortes de jornal e outras referências ao clube do coração. Na “cidade”, Hilário também é famoso como barbeiro, profissão que exerce desde adolescente – 55 anos só nessa rua de Santos. “A gente não pode mudar de endereço, senão perde a freguesia. Tenho freguês que atendo há mais de 50 anos”, diz Hilário, que faz questão de frisar que é barbeiro, e não cabeleireiro. “Barbeiro é tradicional, corta o cabelo na tesoura e não na máquina”, diz o simpático senhor que, apesar da idade e de três cirurgias de coração, passa horas em pé cortando cabelos, e barbas e contando suas histórias para os fregueses. E em se tratando de peripécias vividas pelo Jabuca, haja história!   

 
Uniformes e camuflados
A loja foi aberta há 75 anos por José Amaro, um militar que também era alfaiate e pensou em atender os companheiros de farda, vendendo roupas e coturnos. Com sua morte, o filho Cristiano José Ferreira resolveu modernizar, dando um ar mais “light” para a loja, oferecendo também roupas camufladas e vestimentas próprias para caminhadas, pescarias, jogos corporativos. A Confecções Ema sempre funcionou na rua Bráz Cubas (há 21 anos no nº 21, próximo à Alfândega) e é a única especializada neste tipo de mercadoria na Baixada Santista. Cristiano herdou o dom do pai com a linha e a tesoura e também confecciona roupas sob encomenda. “Há réplicas difíceis, mas tendo a foto e todos os parâmetros a gente faz. O maior desafio é chegar o mais perto possível ao que, a pessoa deseja”. Hoje, a casa trabalha com uniformes militares, de segurança patrimonial, botas, quepes, carteiras funcionais. Também é muito procurada para festas à fantasia.
 
Templo dos vinis
Maysa, Trio Irakitan, Osquestra Tabajara, Lucho Gatica, Turma do Balão Mágico, Valsas Vienenses, Ray Conniff, Roberto Carlos, A Arte de Mercedes Sosa, O Som da Gafieira Raul de Barros. Neste balaio de antigos vinis tem para todos os gostos. Logo na entrada da loja “A Musical”, na Praça Mauá, 25/26, uma banca anuncia LPs a preços que vão de R$ 5 a R$ 25. São discos usados, em bom estado de conservação e que por incrível que pareça ainda tem público fiel. Caso do produtor musical João Romualdo, de 32 anos. Ele estima ter mais de mil vinis em casa. Embora nascido na época da transição para o CD, gosta da sonoridade e da arte das capas dos antigos discos. A proprietária da loja, Márcia de Oliveira, também acredita que é isto que atrai o público e continua comprando LPs usados, alguns até com dedicatória na capa. “A Musical” existe há 80 anos e não abandonou o comércio de vitrolas (lembram?), expostas ao lado de CDs, DVDs, instrumentos musicais e livros de métodos didáticos. “Sentimos os efeitos da pirataria há alguns anos, mas agora passou. Quem gosta da qualidade do som, do encarte e não quer danificar seu aparelho, compra o original”, conclui Márcia.

 

 
Mestres na arte da costura
O português Américo Matias completará 90 anos em agosto, demonstra a fragilidade própria da idade para falar e caminhar, mas permanece ativo às voltas com tesouras, linhas e tecidos nobres com os quais confecciona ternos e calças sob medida. Ele é um dos sócios da loja ReiModas, que fica na rua Frei Gaspar, 120. Em cima funciona a camisaria de Walter Alves Souza, 79 anos.  Se Américo está na profissão desde a adolescência, Walter não fica atrás: é camiseiro há 62 anos. “Tudo que é feito à mão com as medidas do corpo cai perfeito”, dizem. A freguesia é formada por profissionais liberais, políticos, empresários. “Gente que gosta de se vestir bem”, justificam. Seu Américo reconhece que a profissão de alfaiate pode estar com os dias contados. “Os jovens não querem mais aprender e é bem mais barato comprar um terno pronto, embora a qualidade e o caimento não tenham comparação”. O feitio de um terno custa em torno de R$ 1 mil, enquanto o de uma camisa sai por volta de R$ 130,00.  Dinheiro para pagar o material usado, os dias que o trabalho consome e a expertise de seus artesãos.

 
Louças do tempo da vovó
Há 36 anos com comércio na cidade, Doralice Santos está desanimada e até cogita fechar as portas este ano. Sua loja, a Novidades Caiçara (na rua General Câmara, 87), oferece peças decorativas e de utilidade doméstica, a maioria em louça e cerâmica que Doralice vai buscar em Porto Ferreira, cidade do interior paulista famosa pela fabricação desses artigos. São vasos, sopeiras, compoteiras, flores artificiais e muitas outras peças de decoração, algumas lançadas há mais de três décadas. A comerciante viu a freguesia minguar com a entrada das lojas de “1,99”, que trabalham com mercadoria de origem chinesa a preços imbatíveis. O mesmo não se pode dizer da qualidade. “Hoje a maioria do meu público é evangélico, que gosta de comprar vasos para decoração das igrejas, mas está bem difícil”, admite.