Clara Monforte

Olhos nos Olhos com Flávio Lafraia

16/01/2015
Olhos nos Olhos com Flávio Lafraia | Jornal da Orla
FLÁVIO LAFRAIA é santista, viveu à beira-mar e, na imensidão azul, encontrou a sua forma de expressão. Especialista em pinturas e gravuras, o artista de 60 anos iniciou a carreira adolescente, decorando pranchas de surfe e sonrisal,  aquelas tábuas redondas que os moleques das décadas passadas usavam para deslizar na beira do mar. O interesse pelo tema náutico está diretamente ligado à sua origem caiçara, já que acompanhava o pai, trabalhador do mercado de café. Desde esta época, os navios tornaram-se uma paixão e forte referência para o seu trabalho de artista. Todo esse talento pode ser conferido até 1º de março, na Pinacoteca Benedicto Calixto, com a exposição “Barcos de Outrora”, que reúne 30 obras executadas a partir de projetos e plantas originais de antigas embarcações,.
 
De onde vem a paixão por barcos e o interesse pelo tema náutico?
Da infância. Eu nasci praticamente colado em barco. Meu pai tinha um classic e minha memória afetiva vem desta época. A primeira vez que saí de barco, pelo Clube de Pesca de Santos, ainda dava para ver botos no mar. Aquilo me persegue até hoje e, além disso, o meu esporte é remo. Aliado a isso, existe a facilidade  com o desenho, fui enveredando por este caminho. É uma delícia pegar a silhueta de um barco. Cada um deles, cada navio, cada barquinha, tem uma história. Afinal, a colonização do mundo foi feita de barco, ainda não existia avião. Sem contar que isto está na minha alma, e tudo isso também está diretamente ligado a Santos que, por sua vez, combina com o Porto. Até o convite e o banner da exposição, que é uma catraia, é bem santista. Além de ser bonita, a catraia é um meio de locomoção e, por que não dizer, um modo de vida?
 
Como se tornou especialista em pinturas e gravuras?
Veio pelo lado profissional, trabalhei em agências de publicidade, iniciei como estagiário e ilustrador, daí comecei a me aprimorar na arte, na tinta acrílica, foi um verdadeiro laboratório antes de enveredar para a pintura de barcos, passando pelo realismo, flores, peixes…
 
Você começou a carreira ainda na adolescência, decorando pranchas de surfe  e sonrisal. Como foi esta experiência?
No início, fazia pranchas de madeira, trabalhávamos fazendo até de caixotes. Meu irmão, para incrementar, foi desenhando uma coisinha aqui, outra acolá. Éramos garotos, então desenhávamos o “Batman”, o “Pica-pau”, o “Super-Homem”, brincando de dar formas aos desenhos. Foi o início, e gerou um bom dinheiro. Solicitam desenhos, não só de pranchas, até hoje.
 
O que as suas obras mais revelam sobre você, além de ser um apaixonado por barcos e. mar?
Revelam muita paciência e perseverança, o que é muito importante. Pessoas muito chegadas, querendo o meu bem, diziam: “você, como artista-plástico, não vai sobreviver pintando barcos”. O que eu levo desta experiência laboratorial, de usar diferentes materiais e também de “me meter” a fazer esculturas, é saber o que é bom e o que é ruim, já que tenho olhar critico, até comigo mesmo.
 
Ainda menino, você circulava pela Rua XV, no Centro da cidade, e frequentava o cais do Porto. Que lembranças tem desta época?
Tenho muitas marcantes em minha memória… os tons dos navios, o cheiro do Porto, que lembrava o de café misturado com maresia, a plasticidade das construções, os casarios antigos, edifícios que a recuperação a curto prazo não seria possível, além dos galpões, os guindastes… Não é “minha praia” fazer paisagens, porque já existem bons artistas em Santos, como o Veríssimo, a Miriam Alvin. Procuro retratar os navios como um todo, com a plasticidade da beleza do corpo de uma mulher.
 
Dá para fazer este paralelo?
Falo da beleza das linhas do corpo da mulher. A forma de cada barco de navio, dá para fazer um paralelo, sim, porque é bonito. Vejo o corpo do barco, não com um olhar sensual, mas com um olhar de plástica.
 
Como é o seu processo de criação? Existe algum ritual que você segue para compor as suas obras?
Existe um ritual de limpeza da alma, anteriormente, dois dias antes. Neste tempo, eu tiro os problemas da cabeça, fico mais voltado para a pesquisa, no que se refere à planta do navio, escolhendo a música certa para executar determinado trabalho, eliminando qualquer tipo de arte que possa distrair. Também nunca deixo de terminar um trabalho e começo outro, porque isso me incomoda. Existe uma presença da mediunidade quando estou executando uma obra de arte.
 
Como assim?
Sinto que tem alguém junto, perto. Quando estou fazendo um trabalho desses, perco a noção do tempo em detalhes. Às vezes, faço três tons de guache em um centímetro quadrado. Em outras, acordo oito, seis da manhã, chego a pintar de dez a onze horas por dia. O lado moral me força, porque penso que, quanto mais eu produzir, mais quadros eu vou ter. Fico preocupado com tempo de vida útil para produzir esses quadros.
 
Seria uma maneira de deixar para a posteridade?
De certa maneira, sim. Isso é ficar, gravar, deixar um rastro bonito, do bem. Tantos ficaram conhecidos só depois de mortos, e é uma pena morrer e ficar famoso. Não preciso disso, pois já sou bem conhecido… Mas estar ligado ao universo com a arte que fiz, deixar algo gravado como pinturas é bacana. Há obras que estão por aí milhões anos. Faço meu trabalho para que eles sobrevivam ao tempo, por isso só uso materiais de qualidade para que isso aconteça. Também fico cansadíssimo ao terminar cada quadro, dou um espaço de até dois dias para iniciar outro trabalho porque estressa: são muitos detalhes.