Deborah Secco está entre as melhores atrizes de sua geração. Com várias novelas no currículo, entre papéis de destaque que variam de mocinhas, periguetes e vilãs, ela busca no cinema personagens mais desafiadores, como a prostituta “Bruna Surfistinha”, que lhe rendeu vários prêmios e, desta vez, para interpretar a soropositiva Judite, do filme “Boa Sorte”, em cartaz nos cinemas de todo o país, precisou emagrecer mais de uma dezena de quilos. À frente do elenco, ela contracena com outros grandes nomes da dramaturgia, como Fernanda Montenegro e Cássia Kiss Magro.
Como você avalia a importância de Bruna Surfistinha em sua trajetória?
Veio o convite para o “Bruna Surfistinha”, o que me encheu de dúvida, porque o Marcos Baldini era um diretor estreante e a história estava na fronteira entre o filme que relata a vida dura de uma prostituta e a pornografia. Liguei para vários diretores, amigos e artistas que admirava e todos me recomendaram não fazer. Mas alguma coisa dentro de mim falava: “faz”.
Por que decidiu fazer?
Consegui uma boa negociação e acabei virando um pouco dona do filme também. Tive liberdade para dizer o que queria e o que não queria que entrasse no filme depois de filmado. Isso foi muito importante para que pudesse fazer o trabalho daquela maneira, entregue. E foi a primeira vez que eu me desafiei como atriz. Peguei uma coisa que não sabia se sabia fazer. Tudo podia dar errado.
E depois de “Bruna”?
Comecei uma procura ansiosa e desenfreada por outra personagem capaz de me ensinar, de mudar minha mente, de me fazer enxergar a vida de uma forma diferente. E aí veio a Judite, um presente que não sei como agradecer. Porque, além de tudo, ela me deu a chance de exercitar outro tipo de interpretação, mais limpa, mais cinematográfica, mais intensa. É no cinema que consigo ir mais fundo, buscar essa atriz que eu não sei se sou capaz de ser, e é esse desafio que quero para a minha vida.
Como você descreve a sua personagem Judite em “Boa Sorte”?
Descrever Judite é uma tarefa complicada. Sem dúvida é uma pessoa intensa, que viveu profundamente, inteiramente, loucamente, e agora vive a paz de quem já não tem mais o que fazer aqui, já esgotou todas as possibilidades. Ela traz uma forma de ver a vida com calma e serenidade. Talvez, se todos nós tivéssemos essa consciência, poderíamos ser bem mais felizes.
E como Judite chegou até você?
Judite não chegou até mim, essa personagem eu fui buscar, corri atrás dela. Soube por uma amiga em comum que a Carol Jabor filmaria o conto “Frontal com Fanta”, do Jorge Furtado, e fiquei louca, porque já conhecia o conto e era apaixonada por ele. Queria muito ter comprado esse conto, mas os direitos não estavam mais disponíveis. Quando soube que a Carol ia filmar, o elenco estava praticamente definido, resolvi ir atrás dela. Mandei um e-mail, pedindo para que ela fizesse um teste comigo. Consegui convencê-la e, depois, entrei como coprodutora. Batalhei muito pelo filme, e acho que minha vontade de fazer a Judite, meu amor pela personagem foi decisivo para Carol ter se rendido à minha pressão. Como atriz, até hoje não tive um trabalho tão intenso, profundo e que tenha me feito tão bem.
Como você se preparou para viver Judite?
Antes mesmo de Carol Jabor confirmar que faria o filme, comecei a pesquisar. Fui conversar com alguns médicos sobre a Aids e a questão das drogas. Quando recebi a notícia de que faria mesmo o filme, ainda tivemos que administrar nossas agendas. Pela minha, precisaria que ela adiasse um pouco as filmagens – mas ela me contou que estava grávida. Na data em que eu poderia filmar, ela estaria parindo! Dei um jeito, então.
E a preparação física?
Apesar da grande força de espírito da Judite, ela está muito debilitada fisicamente, e precisava trazer essa fragilidade no meu corpo. As pessoas deveriam me olhar e ver uma pessoa fraca, ao mesmo tempo tinha que interpretar essa alma forte. Por isso foi tão importante perder peso. Antes de filmar estava fazendo uma série, então tive apenas três semanas para emagrecer. Consegui perder 12 quilos, o que realmente foi bem difícil, mas hoje tenho certeza de que não foi nem o mais difícil, nem o mais importante para o filme. Bem mais importante foi ter conseguido um elo muito especial com o João Pedro Zappa para contar essa história de amor.
Como foi essa sintonia com ele em cena?
João foi um grande parceiro. Nós nos apaixonamos verdadeiramente um pelo outro, não como homem e mulher, mas pela criação de um elo, por termos construído uma coisa juntos. Uma experiência que, tenho certeza, vai fazer com que a gente se ame para sempre para o resto da vida. Conseguimos a intimidade emocional e física que era necessária para o filme. Contamos uma história de amor que construímos entre a atriz e o ator, e entre os personagens.
Qual a história mais importante a ser contada?
Era o quanto Judite tinha a oferecer de vida para ele, e o quanto ela aprendeu com ele. Acho que a Judite foi amada de verdade pela primeira vez pelo João, então ela vai embora com um grande presente. Por que sermos genuinamente amados por alguém é algo raro, e talvez seja a melhor coisa que podemos levar dessa vida. Ela no fim consegue isso, e ele talvez viva a vida inteira sem ter um amor como o dela. E João vai viver com esse amor alimentando a vida dele. Essa história de amor salva os dois, um salva o outro. De certa forma, Judite continua vivendo em João graças a esse amor, essa experiência que eles compartilharam.
Como você vê as questões abordadas pelo filme, como drogas e loucura?
Vivemos uma época em que a dependência química aumentou muito. Não só de pessoas que optam por se drogar, mas também pessoas que são medicadas. Os remédios ganham importância cada vez maior, não param de surgir novas marcas, e cada vez mais pessoas fazem uso de remédios. O tema das drogas ilícitas também entra de forma muito sutil. Até que ponto a maconha é tão prejudicial, se for usada para medicar ou de forma mais consciente, com auxílio de informação? O que faz mais mal? Um remédio que contém diversos elementos químicos ou uma erva que pode acalmar, fazer dormir da mesma maneira? Eu não faço apologia de nada, ainda tenho muitas dúvidas, mas acho que o filme levanta essas dúvidas de forma muito interessante, ele faz pensar. O que acho ótimo, porque odeio filmes que trazem respostas.
E contracenar com Fernanda Montenegro?
Foi um dos momentos mais tensos e intensos da minha vida. Desde que soube que dona Fernanda faria minha avó no filme, foi uma das minhas maiores alegrias, mas foi difícil também, porque não conseguia parar de olhar para ela como a mulher que eu quero ser, a atriz que eu quero ser, a mãe que eu quero ser… Tenho uma imensa admiração por Fernanda não só como atriz, mas pela mulher que ela é.
Como ela é?
É de uma generosidade rara e ter contracenado com ela só me fez crescer. Foi incrível ouvir palavras de incentivo, sobre minha dedicação, minhas escolhas, meu direcionamento de carreira. Já teria valido o filme por ter conhecido essa mulher, mas foi melhor do que eu podia imaginar. Ela falou do frio na barriga, do medo que vem sempre, que todos nós artistas temos. Foi um alívio saber que ela estava com medo também. Foi confortante saber que estamos no mesmo barco. Bem, talvez não no mesmo barco – eu ainda estou de bote, ela já está de navio (risos).