Santos

Um dia que ficará cicatrizado em nós

15/08/2014
Um dia que ficará cicatrizado em nós | Jornal da Orla
por Mírian Ribeiro
 
Aos poucos “a ficha vai caindo”, como se diz diante de um acontecimento surpreendente e inesperado como foi o acidente de quarta-feira, dia 13, no Boqueirão, que matou Eduardo Campos e mais seis pessoas. No primeiro momento, a notícia que um avião (ou helicóptero, como chegaram a dizer de início) tinha caído no bairro deixou todos na cidade perplexos. O boca a boca ressuscitou a “rádio peão”: O quê, como?!?! Depois, veio o susto e a sensação de fragilidade diante da morte e das circunstâncias da vida.
 
Até então, um acidente aéreo no miolo residencial de Santos era algo totalmente improvável de ocorrer, mesmo porque a cidade não dispõe de um aeroporto comercial, com aeronaves circulando em rotas desenhadas no ar. Na quinta à noite velas acesas e flores brancas depositadas na calçada próximo ao local do acidente davam o toque fúnebre e real ao fato. 
 
Para os moradores da área atingida, o burburinho que se formou naquele quadrilátero do Boqueirão desde a tragédia (com a presença constante da imprensa, policiais, autoridades, curiosos) deve ter deixado as ideias ainda mais confusas. De um momento para outro daquela manhã fria e chuvosa, que convidava a não pôr o nariz pra fora, tudo desmoronou. Ruas interditadas e comércio fechado – loja de locação de festa, casa do puff, pet shop, consultoria imobiliária e até uma banca de jornal – completam o cenário.

E agora, Juarez?
O professor Benedito Juarez Câmara perdeu o investimento de toda uma vida e o seu ganha-pão. Ele é dono da Academia Mahatma, seriamente danificada no acidente. “Vou ter que começar do zero”, desabafou ele na sexta-feira, com semblante cansado e ainda sem norte. A academia não tem seguro. “O prejuízo foi enorme, vamos ver qual o órgão responsável, uma aeronave para sobrevoar precisa de seguro”, diz, com o que lhe resta de esperança. 
 
Juarez, hoje com 69 anos, foi um dos pioneiros no fitness na cidade. Abriu a Mahatma há 39 anos, quando exercitar o corpo ainda era preocupação de poucos. Começou na rua Luiz de Farias, no Gonzaga, e depois passou para a rua Alexandre Herculano. Durante três décadas investiu na ampliação da academia, o que resultou em um prédio de três andares, três piscinas e quase mil alunos – cerca de 500 deles de atividades na água, os quais ele já dá como perdidos devido à destruição das instalações.
 
Fisiologista do exercício, Juarez acredita que pode recuperar a academia, mas não tem a menor ideia de quando isso se dará. Tampouco sabe estimar o montante dos prejuízos. Sua preocupação no momento é com os grupos especiais do programa de saúde, doença e envelhecimento. “Tenho turmas de musculação com alunos hipertensos, diabéticos, obesos, traumatizados, que não podem interromper o treinamento”, diz ele, que está pensando em alugar um espaço para continuar esse trabalho. Além dos prejuízos materiais, há outro agravante: “Dezessseis pessoas dependem de mim, entre funcionários e professores, e contam com seus salários no próximo mês”.
 
Alívio pela vida
Apesar dos prejuízos financeiros e do abalo psicológico que o acidente provocou, as vítimas diretamente envolvidas suspiram aliviadas pelas vidas poupadas em terra. “Naquela manhã, por causa do frio e da chuva, muita gente não veio à academia. Na piscina só tinha um aluno”, conta Juarez, que dez minutos antes do acidente havia deixado o lugar, depois de dar duas aulas, junto com 28 alunos. Ainda assim havia cerca de 50 pessoas no prédio, 30 delas na parte mais atingida. “Infelizmente pessoas perderam a vida, mas, dada à proporção do acidente, em uma zona residencial, dá um conforto muito grande saber que não houve mais vítimas”. 
 
O mesmo pensa a aposentada Marlene Rodrigues Martinez, que foi morar provisoriamente com uma sobrinha depois que seu apartamento, onde vive com duas irmãs e o cachorro, foi danificado. “O seguro do condomínio vai cobrir. Depois, eles vão ver como fica. O importante é que não morreu mais gente”. Marlene estava na cozinha quando ouviu o barulho. “Trabalhei 40 anos em companhia aérea, sabia que era som de avião, não de helicóptero”. Ela mora no imóvel há sete anos e diz que agora não tem a menor ideia de quando retornará. “Na hora fiquei perplexa, mas me mantive forte até agora”, conta, mantendo a voz firme de quem sabe que ganhou mais uma chance da vida.

Equilíbrio na hora do socorro

Em 17 de julho de 2007, o capitão do Corpo de Bombeiros Marcos Palumbo foi um dos homens que trabalhou no resgate das vítimas do acidente da TAM, no aeroporto de Congonhas, que causou 199 mortes. Seis anos depois, em 29 de novembro de 2013, ele é quem foi a vítima, no episódio que classifica como o pior de sua carreira, iniciada nos Bombeiros em 1999: Palumbo e outros companheiros ficaram feridos ao serem encurralados pelas labaredas no incêndio que atingiu o Memorial da América Latina. Desde quarta-feira, 13, o capitão foi deslocado para Santos, como responsável pela área de comunicação da corporação. Ou seja, é ele quem faz o meio de campo com a imprensa.
 
“O incêndio no Memorial foi o pior, porque quase explodiu comigo dentro. Depois que tiramos os colegas, houve a explosão. Mas o acidente da TAM foi o mais chocante, as vítimas pareciam que estavam meditando, sentadas”, recorda. Palumbo diz que recebeu treinamento psicológico para enfrentar tragédias como essas quando cursou a Academia do Barro Branco, de formação de oficiais, mas acredita que o importante é a pessoa ter inteligência emocional para distinguir as situações e agir.
 
No caso do acidente de Santos, o capitão pede paciência aos moradores até o processo de rastreamento na área ser concluído. “O trabalho continua até que não tenha mais indícios de pedaços da aeronave ou parte dos corpos das vítimas. Na busca manual que os bombeiros estão realizando, nas raízes superficiais do bambuzal, foram encontrados tecidos de osso, visceral e de pele, que podem ser importantes para a perícia, e também objetos pessoais, como pulseira, sapato e até documento”.

Apoio psicológico e jurídico

Além do trabalho da Defesa Civil, que ajudou o Corpo de Bombeiros e avaliou os riscos dos imóveis atingidos, a  Prefeitura acionou profissionais da Coordenadoria de Saúde Mental da Prefeitura para dar o amparo psicológico às vítimas. Já a Secretaria de Defesa da Cidadania orientou os moradores a registrar boletins de ocorrência no 7º DP, para que as medidas legais sejam tomadas. 
 
Além disso, moradores foram informados de que o Procon faz contato com a seguradora da empresa AF Andrade Empreendimentos e Participações Ltda, proprietária da aeronave, para que as famílias afetadas sejam ressarcidas por todos os danos materiais. “As famílias merecem toda a nossa atenção. A Prefeitura adotou todas as providências no sentido de prestar atendimento imediato”, disse o prefeito Paulo Alexandre Barbosa, que esteve no local acompanhado de vários secretários.
 
Oportunistas de plantão
O estivador Donizete Machado Júnior, de 39 anos, conhecido no cais por Maguila, parece ter gostado dos holofotes que recebeu em abril deste ano, quando denunciou a empresa portuária onde trabalhava, a Santos Brasil, de tê-lo demitido sem justa causa após descobrir que era gay. Na época, a empresa negou a acusação e garantiu que tem outros funcionários homossexuais.
 
Quem acompanhou o noticiário do acidente na TV na quarta-feira, 13, e achou algo familiar no candidato a “herói” que concedeu entrevista ao repórter José Roberto Burnier, da Globo, não se enganou. Era ele mesmo, o Maguila. Vestido com macacão de trabalho e luvas, contou com a voz embargada de emoção, quase indo às lágrimas, como socorreu feridos e localizou o corpo de Eduardo Campos entre os destroços, chegando, inclusive, a limpar seu rosto e abrir seus olhos – verdes ou azuis, ficou na dúvida. Experiente, Burnier deu a impressão de ter percebido o golpe e tratou de não prolongar a conversa ao vivo.
 
Ainda assim, os jornais Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, na quinta-feira, publicaram entrevista com o tal personagem, mesmo àquela altura já se sabendo que os corpos ficaram destroçados e o reconhecimento só será possível por exame de DNA. O assunto virou motivo de piada nas redes sociais.
 
Cara-de-pau, exibicionista, oportunista, muitos adjetivos nada qualificadores podem ser atribuídos ao entrevistado, que não teve escrúpulos em se aproveitar da desgraça alheia. Tipos assim sempre surgem na ocorrência de tragédias. Na internet, começaram a postar piadinhas sem graça ou então fotos de pedaços de corpos humanos de outros acidentes. Sem falar dos papagaios de pirata que se colocam estrategicamente atrás dos repórteres, nas entradas ao vivo, e ficam sorrindo, acenando ou fazendo o “V da vitória” com as mãos…