Comportamento

Quando mentir vira hábito

30/05/2014
Quando mentir vira hábito | Jornal da Orla
Mentiras “sinceras” lhe interessam? Quem nunca contou uma mentirinha?  Quem negar, com certeza já está mentindo. A mentira faz parte da vida do ser humano e é utilizada para agradar pessoas ou escapar de situações embaraçosas, preservar a privacidade, os vínculos afetivos, escapar de um castigo, não magoar o outro. São as pequenas mentiras toleradas pela sociedade, já que muitas vezes a franqueza total pode ferir sentimentos ou ser interpretada como grosseria. 
Afinal, ninguém precisa alertar o outro de que ele engordou, não é mesmo?

Embora seja apontada como desvio de caráter, a mentira não consta entre os sete pecados capitais da fé católica, talvez porque das mentiras que ouvimos (ou falamos) todos os dias apenas uma pequena porcentagem ocasiona prejuízo material ou moral às demais pessoas.


Contar histórias falsas de forma sistematizada, porém, sinaliza uma doença conhecida como mitomania. Na última semana, o assunto voltou à mídia com a história de Kelly Samara Camargo dos Santos, a Kelly Tranchesi, que se fazia passar por socialite para aplicar seus golpes. “A ficção mitomaníaca envolve concepções de grandeza, de ascendência familiar excepcional, de capacidades e feitos extraordinários”, explica a psiquiatra forense Hilda Morana. Essas fabulações podem levar o indivíduo a cometer crimes e fraudes. 

De tempos em tempos casos como o de Kelly estampam os noticiários, mas há muitos outros mentirosos de carteirinha circulando pela sociedade – anônimos ou não. O psicólogo espanhol José María Martínez Selva, autor do livro “A Grande Mentira”, diz que o político tende a ser mais mentiroso do que os demais porque tem necessidade de conquistar pessoas, de seduzir para que o apoiem, votem nele. Tem de dizer que sua mensagem é melhor que a do adversário, fazer promessas, falar de um futuro que é imprevisível. “Nesse processo, é difícil que não mintam – e muitos aprendem a mentir bem, confirmando o ditado de que a prática leva à perfeição”.

Mentirosos compulsivos
O distúrbio é caracterizado pelo longo vício de mentir por mentir, sobre qualquer assunto, sem motivo ou controle da situação. Não há intenção de tirar vantagem. A pessoa pode acreditar nas suas mentiras como verdade e, quando esquece a história que inventou, responde de forma evasiva. A mentira compulsiva geralmente tem origem num ambiente familiar com exagerado grau de disciplina, que pune erros e fracassos. 

Mitomaníacos 
Mitomania é um distúrbio de comportamento definido como uma tendência incontrolável a mentir. O indivíduo, geralmente, tem baixa autoestima e dificuldade em aceitar a própria realidade. Costuma imaginar uma história fantástica ou várias delas, com a finalidade de ganho pessoal. Normalmente são pessoas que se vangloriam, imaginando-se ricas, com poder, fama etc. Quando confrontadas com a realidade, costumam reagir com novas mentiras. 

Segundo a psiquiatra Mara Maranhão, do Hospital Albert Einstein, o reconhecimento desses quadros pode ser bastante difícil, pois as histórias são convincentes e ricas em detalhes. “Geralmente é necessário um tempo de convivência com o indivíduo que mente de forma patológica até que algo seja percebido. Ele pode relatar muitos acontecimentos impactantes, catastróficos ou pouco usuais, que podem ser incompatíveis com suas condições econômicas e suas habilidades pessoais”. 
 
Tratamentos e recaídas
O tratamento para o mentiroso patológico é realizado com psicólogo e psiquiatra, mas a cura não é simples e o indivíduo está sujeito a recaídas caso não haja o acompanhamento profissional necessário. “É preciso esclarecer, sem cobranças ou pressão, a razão pela qual a pessoa está mentindo, livrando-a de culpas e fazendo com que entenda até que ponto vale a pena continuar inventando histórias. Em seguida, é necessário transformar a vontade de mentir em alguma atividade produtiva, como no trabalho, por exemplo”, comentou o psicólogo especializado em antropologia Mauro Godoy. Com certeza, criatividade é o que não falta para essas pessoas.
 
Casos famosos
Grandes mentirosos sempre rendem audiência, seja na ficção ou na vida real. No cinema, O talentoso Ripley é o arquétipo do mitômano, o indivíduo que se faz passar por quem não é para levar alguma vantagem – seja financeira ou emocional. 
Já em “Prenda-me se for capaz”, outro filme sobre o tema, estrelado por Leonardo DiCaprio, é retratada a história real de  Frank Abagnale Jr., que ganhou milhões de dólares fazendo passar-se por piloto de avião, médico e advogado. 
No Brasil, um dos casos mais famosos, e que também inspirou filme (VIPs, com Wagner Moura),  é o de Marcelo Nascimento da Rocha, que se passou por filho do dono da Gol, durante o carnaval de Recife em 2001. Rocha chegou a ter 16 identidades diferentes e exemplifica bem do que se trata a doença: mentir compulsivamente e usufruir das histórias.