Comportamento

Território livre, mas nem tanto

25/04/2014
Território livre, mas nem tanto | Jornal da Orla
Esta semana um assunto deu o que falar entre tantos outros que foram destaque na mídia: a sanção da presidente Dilma Rousseff ao Marco Civil da Internet, considerado uma espécie de Constituição para uso da rede no país. A nova lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para internautas e provedores. A presidente aproveitou a plateia do NETmundial, fórum global realizado em São Paulo para discutir o futuro da internet, e que contou com a presença do vice-presidente do Google, Vint Cerf, e do próprio criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee. 

Os cinco pontos principais do Marco Civil da Internet são a neutralidade, a privacidade, a qualidade de serviço, a exclusão de conteúdo e o armazenamento de dados. Para o usuário comum, o texto não traz mudanças significativas no acesso à rede, mas, ao menos na leitura das novas regras, o espaço cibernético não se mostra tão democrático quanto parece. Da mesma forma que para uns é fácil entender as mudanças estabelecidas pela nova lei, para outros é como falar chinês.
 
Velocidade

São dois grupos distintos, que ocupam as pontas opostas da nova pirâmide social da atual época tecnológica: os “dromoaptos” e os “droinaptos”, como define Eugênio Trivinho, professor do programa de estudos pós-graduados em comunicação e semiótica na PUC-SP e um dos grandes nomes do estudo da cibercultura.
 
Explica-se: Dromo, em grego, significa velocidade – característica que determina a lógica desta era. “Dromoaptos são aqueles que têm capacidade de ser velozes no trato com as senhas infotécnicas e condições financeiras para bancar a sua inclusão permanente na cibercultura. É uma elite com capacidade econômica e cognitiva e, principalmente, vontade de acompanhar as reciclagens”, acrescenta Trivinho, autor do livro “Dromocracia Cibercultural’.
 
Novos miseráveis

Já os dromoinaptos são os novos pobres da cibercultura, que se distribuem nas categorias sociais de acesso rarefeito ou nulo às tecnologias e redes interativas. “Os mais socialmente desfavorecidos são os novos segregados sobre cujos ombros a história faz recair, há pelo menos cinco décadas, os dissabores de uma nova miséria: a miséria digital, correspondente à impossibilidade de acesso à vida na época tecnológica atual”. 
 
Conforme foi divulgado no NETmundial, quase dois terços da população mundial não estão conectados à internet. Na África, por exemplo, apenas 16% das pessoas têm acesso à rede mundial de computadores.

Lugar ao sol
 

Segundo Eugênio Trivinho, a velocidade das novas tecnologias impõe uma obrigação de se dominar a informática como forma de sobrevivência e, ao mesmo tempo, exclui impiedosamente. A época requer não só conhecimentos convencionais, como a matemática no passado, mas também saber usar as tecnologias. Porém, até quem pensa que está garantido na cibercultura pode perder o lugar amanhã. Isto porque uma exigência do capitalismo é que o indivíduo esteja sempre se atualizando, e isso pressupõe dinheiro para bancar essas reciclagens.
 
A inclusão digital, porém, não é passe livre para a inclusão social, afirma o professor. “O domínio da tecnologia é apenas um ingrediente da inclusão social, que abrange um pacote mais universal e extenso de direitos, como acessos a bens materiais e simbólicos com a dignidade humana: à alimentação, à saúde, à educação, à mobilidade, à segurança e assim por diante”.

O fenômeno das redes sociais
 

Em outubro de 2003, quatro estudantes (Mark Zuckerberg, Dustin Moskovitz, Chris Hughes e o brasileiro Eduardo Saverin) da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, desenvolvem uma rede dedicada à quase pueril tarefa de comparar garotas da faculdade, escolhendo as mais atraentes. Em quatro horas Facemash atrai 450 visitas e exibe fotos das estudantes 22 mil vezes. A empreitada incentiva Zuckerberg a criar o Facebook, que há um ano já contabilizava 73 milhões de usuários no Brasil.

De lá para cá, novas redes sociais surgiram, conectando milhões de pessoas no mundo e derrubando fronteiras. Para o professor Eugênio Trivinho, as redes sociais representam um significativo instrumento de acesso, sociabilidade e troca, disponível para os cidadãos. “As redes sociais são um fenômeno.

Podemos considerá-las um grande horizonte do humano, porque criam possibilidade de laços, de aprendizado e crescimento coletivo”. Ao mesmo tempo, possibilita ao cidadão comum exercitar o direito de ação e participação.


Por outro lado, ele considera as redes sociais um termômetro da necessidade de compensação de um processo de solidão que ficou mais intenso. “O ser humano é solitário e precisa de vínculo. As tecnologias e redes interativas não suprem necessidades humanas, ao contrário”. Para ele, a superexposição praticada por muitos internautas em rede social seria uma forma de se fazer visível ao outro como prova de autoexistência e de valoração ou promoção de si mesmo, como se o existir presencial apenas não fosse mais suficiente para cumprir isso.

Freud explica
 

O estudioso da cibercultura recorre a Freud para explicar por que há usuários que mudam o comportamento em rede social. “A psicanálise reconhece que o comportamento de um indivíduo muda conforme o contexto em que ele se encontra. Imerso na multidão, o ego flutua, o superego laceia e o inconsciente se libera de tal forma que um indivíduo pode ter atitudes ou realizar atos completamente distintos dos que ele seria capaz de referendar caso estivesse sozinho. Nas redes sociais, não poderia ser diferente. Imerso nelas, um usuário pode ter reações que ele mesmo venha eventualmente a estranhar depois. A regra do anonimato, amplamente vantajosa em muito aspectos, e o dispositivo do nickname jogam um papel fundamental na configuração dessa discrepância de atitudes e procedimentos”. 

Outro aspecto analisado é o comportamento, principalmente dos mais jovens, de se manter conectado a maior parte do tempo, isolando-se ou se distanciando das outras pessoas na vida real. “O outro virtual passa ser supervalorado em detrimento do outro presencial, muitas vezes vizinho ou ao lado, no mesmo horário e lugar. Existe, de fato, um agravante peculiar nesse estado de coisas, numa civilização como a nossa, inteiramente mediatizada: a absorção total da consciência por eventos da rede ou pelo outro virtual não deixa, no fundo, de significar violência sutil, em geral involuntária, contra o valor do outro presencial”. Seria como desautorizar simbolicamente a pessoa de carne e osso na vida prática.