Considerado um dos maiores dramaturgos da história do país, Plínio Marcos completaria 80 anos na terça-feira (29). Sua vida foi marcada por lutas, como pela restauração da democracia no Brasil – a ditadura pediu sua cabeça à revista Veja, onde era colunista, por exemplo. O episódio é revelado por Mino Carta, então editor- chefe da Veja, em seu livro, “O Castelo de Âmbar”.
O governo militar exigia a cabeça de Plínio Marcos. Victor Civita, dono de Veja, determinou a Mino Carta:”Demita Plínio Marcos!” A resposta: ” Demita o senhor, até logo e passar bem”. Foram os dois demitidos.
Como cronista, Plínio Marcos publicou trabalhos nos principais órgãos de comunicação do país. Nos últimos dois anos de sua vida, manteve a coluna Janela Santista, no Jornal da Orla.
Foi Plínio, para surpresa de todos nós, quem procurou o Jornal da Orla. “Quero escrever para a minha cidade”, disse ele.
“Mas por que no Jornal da Orla?”, perguntei. “Por que no Jornal da Orla vou escrever o que eu quero, sem censura”, respondeu Plínio. E escreveu, por quase dois anos, até sua morte prematura, aos 64 anos, em conseqüência de dois AVCs.
Em homenagem a ele, republicamos sua última coluna, “Coisas da Vida”, publicada originalmente em 31 de outubro de 1999 e, também, o artigo” Plínio Marcos por Plínio Marcos”.
Grandes personagens não morrem. Plínio Marcos é um deles. Seu legado fica para as futuras gerações. Sim, o contador de histórias fez a sua alma.
Plínio Marcos por Plínio Marcos
Eu sou um contador de histórias.
Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que por eles o teatro é eterno.
Sou um repórter de um tempo mau.
Relato as misérias humanas. Não sou senhor de nada, nem das palavras, nem da energia. Pois o futuro obedece à fatal lei das causas e efeitos. Por isso não carrego o fardo inútil das preocupações. Mas sei, com meus olhos cegos, com meus ouvidos surdos, que a poesia, a magia, a arte e as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos. Sou um viciado em olhar para fora.
E assim é, se lhe parece, figurinha difícil, mestres fingidores , na universidade do povo, no meio da malandragem, pornografando e subvertendo.
Eu quero fazer minha alma.
Coisas da Vida*
O marujo Valdemar atracou um pouco tarde na vida de Maria de Lurdes Rocha. Ela já vinha escolada por muitos anos de janela e ele, catimbado por tremendos temporais. Ambos machucados pelas rebarbas que pegaram nas andanças sem rumo pelos confins das quebradas do mundaréu. Mas, ao se encontrarem um dia no esquisito, se vidraram. Um meteu as botucas nas botucas do outro e nem precisou charla. Os olhos sem brilho da Maria de Lurdes refletiram na noite sem estrelas do marujo Valdemar como dois faróis de luz doce e serena. E ele soltou amarras e navegou ternamente nos braços morenos da namorada. Se amaram na Praia da Pouca Farinha, embrulhados nos raios de luar e embalados no som dolente das ondas beijando a areia branca. Foi gama de pedra. Entrega inteira. Mas já era tarde para eles. Cada um trazia dois caminhos por onde cruzaram mil famtasmas, que de repente saltaram do passado e se agitaram como sombras malditas, bagunçando tudo.
Mas, mesmo assim, foram morar juntos num casebre, onde pretendiam se livrar das cargas que apanharam em estivas de portos estranhos. Cada um levou a ânsia de erguer um mundo. Porém, o que pesava mais na balança eram as grongas. A Maria de Lurdes não botava fé em homem, de tanto tranco que já tinha tomado. E o marujo Valdemar não se fiava em mulher que já passou por muitas mãos. E aí se deu o esquinapo. Mesmo juntos, se ardiam de solidão. Quando podiam se sentir felizes, se enchiam de minhocas nas cacholas.
Maria de Lurdes cortava com ideias de jerico as marolas que sacudiam seu coração. Pensava consigo que não valia a pena curtir esperança no destino, porque um dia, fatalmente, um barco apitaria no cais do porto e o marujo Valdemar se mandaria para cumprir a sorte que Deus lhe deu. Iria embora, sem até breve, vagar de mar em mar. Já o Valdemar em sua cuca fundida pelas maresias de tantos amores fracassados, rejeitava os afetos mais puros, que pretendia ofertar à companheira, com mumunhas fedidas. Achava o marujo que, leviana como todas as mulheres que conheceu, a Maria de Lurdes se arrancaria com um pescador qualquer, pra não deixar mal o mestre de cartas que lhe traçou a rota da bandida. E nessa zorra se atucanavam.
A mulher, conformada por temperamento, deixava andar para ver como ia ficar. Mas o marujo, que era ouriço de natureza, não aguentava as pontas. Se desesperava só de imaginar a duras penas que seria ter que andar por águas barrentas, com seu porão entupido de saudade da Maria de Lurdes e da noite em que a amou na Praia da Pouca Farinha. Que, na verdade, foi a única noite em que amou em toda vida. Se roía de mágoa e se entralhava de dor. Mas, nem de leve se desarmava pra tentar, pelo menos por um momento, ter outra vez a ventura da primeira vez. Que nada! Pra se escorar, tinha que encher o caco. O seu lastro era pequeno e no meio da tormenta não dava equilíbrio. Bêbado, o marujo endoidava e, sem explicação, tacava a mão na fuça da companheira.
Não podia a triste Maria de Lurdes entender que as biabas que o marujo lhe dava eram carinhos de um bruto. De um um poeta sem forrma de expressão. De um amante angustiado e impotente pra reviver o mais belo momento de sua existência. Nada disso podia ocorrer pra Maria de Lurdes. Ela aguentava o repuxo, não por amor ao amor da primeira noite. Mas, pelo prato de comida que, no mocó do marujo Valdemar, nunca faltava e que, nas trilhas por onde aqui passou, muitas vezes era raro.
Com essas e com outras, as quizilas foram ganhando passagem livre. E o que ambos mais temiam, que era o rompimento, um dia aconteceu. O marujo encheu o bucho de cachaça e, sem cerimônia, sentou a pua na mulher. Não prestou. A mulher estava de ovo virado. Se invocou. Pegou seus badulaques e se espiantou. O Valdemar não tomou conhecimento, na hora. Estava muito empapuçado pra se dar conta do que acontecia. Se apagou. Quando se ligou outra vez, além da ressaca, sentiu falta da mulher. Como louco saiu na captura da Maria de Lurdes. Se bateu paca. Por fim a encontrou. A muIher estava no puleiro da Madame Violeta, fazendo o que podia pra adiantar seu lado. O marujo Valdemar endoidou. Ele, que chegou roído de remorso pelas pancadas que havia dado na Maria de Lurdes. se encheu de razão. Achou que a piranha tinha merecido e que era piranha mesmo, porque, se não fosse. não iria se plantar na viração em boca tão escrota. Com essa bola murcha a lhe bater no cocoruto, o marujo aprontou o salseiro. Virou bicho e fez o escarcéu. Bolachou a mulher sem considerar coisa nenhuma. E depois, por paixão, a arrastou de volta pro mocó.
Daí pra frente, a sujeira bateu direto. A Maria de Lurdes se tocou na fraqueza do marujo. Se flagrou que o pinta era loque e, apesar das pancadas que lhe dava quando bêbado, era xibungo. Engolia tudo. E não ficou barato. A mulher avacalhou a guerra. Vira e mexe, desconsiderava o Valdemar com qualquer vagau. Dava rolo esses pererecos da Maria. Mas ficava nisso mesmo. O marujo acabava perdoando e, ainda por luxo, chorando as pitangas. Procurava a mulher e pedia:
– Maria, Maria, faz corno naquela noite na praia!
Porém, o marujo Valdeinar atracou tarde na vida de Maria de Lurdes Rocha. De tanto tranco que tomou pelos caminhos por onde andou, a Maria de Lurdes não sabia ouvir. E era pouco o amor que dava ao marujo Valdemar. E ele, azucrinado, ia se acostumando com aquela miséria. Mas, um dia, não deu pé.
O marujo encheu o caco de cachaça e sentou o pau na Maria de Lurdes. Ela, picada de raiva, resolveu esculachar de vez com o parceiro de mocó. Bordejou quase nas barbas do bruto, ganhou um pilantra qualquer e, bem na vista do marujo, desceu com seu amigo do momento pras areias da Praia da Pouca Farinha. Essa o Valdemar não segurou. Pegou uma arma e, nas encolhas, seguiu o casal. Apareceu de surpresa e não regateou. Fez a desgraça. Chumbou o acompanhante da mulher. E, diante do crime, a Maria de Lurdes se acanhou. Ficou bamba de medo. Fora de si, o Valdemar, sem dizer bulhufas, derrubou a Maria de Lurdes e a possuiu embrulhado nos raios da lua e embalado pelo som dolente das ondas beijando a areia. Se entregou. Mas nada recebeu. Sem reclamar, apanhou a arma e estourou os miolos. A Maria de Lurdes ficou sentada junto aos cadáveres até o dia clarear. E, quando a encontraram, não deu pra ela contar história dolorosa do seu amor.
* Texto originalmente publicado na coluna “Janela Santista”, na edição de 31/10/1999, do Jornal da Orla. Este é o último trabalho de Plínio Marcos.