Frágeis estilhaços de vasos de faiança portuguesa. Uma roda de ferro de um secular brinquedo. Fragmentos de sopeiras, de pratos, pias e de objetos em cerâmica. Raros trilhos de bondes. Lascas de louça e porcelana inglesa. Moedas dos tempos do Império. Frascos de perfumes. Esses são alguns dos objetos antigos que, identificados, brotaram de um enorme subsolo urbano por onde passam diariamente milhares de pessoas e contam parte de uma “cidade invisível”, engolida pela modernidade. Estas peças são apresentadas no livro “A História Sob a Terra: Achados Arqueológicos na Baixada Santista”, lançado sexta passada na Pinacoteca Benedicto Calixto. Assinada por FÁBIO MALAVOGLIA, MARIA LÚCIA MONTES e ZAIDA SIQUEIRA, a obra conta com cerca de 300 imagens e será distribuída gratuitamente para instituições educacionais e culturais na região.
Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre a riqueza arqueológica escondida na região?
Zaida – Surgiu da proposta de apresentar os objetos encontrados durante as escavações para a instalação dos dutos de gás na região. O livro conta essa história, usando como fio condutor as descobertas desses objetos pertencentes a uma “cidade invisível”.
Vestígios de objetos antigos podem ser verdadeiras raridades?
Maria Lúcia – A pesquisa arqueológica não busca raridades, mas, ao contrário, o que é comum e mais frequente, porque é através dessas coisas que se pode conhecer o modo de vida daquelas pessoas às quais elas são associadas. Essa é a história que os achados arqueológicos nos contam. Na verdade, a arqueologia lida com restos, cacos, vestígios de um passado que se tenta desvendar. É, literalmente, o lixo, o descarte de objetos jogados fora e depositados em determinado lugar que pode fornecer essas informações. “Raridade”, aqui, seria encontrar algo além de cacos, como um frasco de perfume inteiro ou um vidro de loção capilar com a marca perfeitamente identificável.
E o valor financeiro destas peças, é mensurável?
Maria Lúcia – “Valor financeiro” teriam os objetos arqueológicos suscetíveis de circulação no mercado, vendidos em antiquários como obras de arte, mas, nesse caso, seriam objetos descartados pela arqueologia ou pelos museus, por sua abundância excessiva, qualidade técnica inferior etc. Nesse caso, seu “valor financeiro” seria medido pelo mercado de arte, não pelo seu interesse arqueológico ou museológico. E há também os casos em que peças de valor arqueológico têm pouco ou nenhum valor financeiro por serem demais abundantes.
Exemplifique, por favor.
É o que acontece com os pequenos cachimbos holandeses feitos de pedra, do século XVII. Até hoje eles continuam sendo encontrados praticamente em toda parte no Recife. Basta abrir uma rua do centro ou consertar a base de uma ponte e lá estão eles, aos pedaços, da conchinha do fumo ao “caninho” para aspirar a fumaça. Por isso, quase qualquer pessoa pode colecioná-los e até dar de presente a quem se interessa pela história pernambucana, vista pelos achados arqueológicos.
De que maneira os objetos encontrados podem contar parte de nossa história?
Fábio – Por associação e dedução. Não há vestígios arqueológicos “isolados” da cultura, do contexto, do ambiente e da época de onde vieram. Assim, da parte se deduz o todo. Peças minúsculas, e aparentemente insignificantes, são capazes de conter um mundo de histórias sobre o tempo que passou.
Em qualquer lugar ainda pode haver estas “heranças” enterradas?
Maria Lúcia – Em muitos lugares, sim. Por exemplo, em Santos, foram identificados em vários locais restos de trilhos de bonde e parte de sistemas de drenagem e canalização de rios, anteriores à construção dos canais. Em pleno Gonzaga, no ano passado, foi encontrada em frente ao antigo Parque Balneário uma galeria, que era parte do sistema de canalização do Dois Rios, para permitir a abertura da avenida Ana Costa. No Valongo, foi encontrada quase por acaso uma galeria semelhante de canalização do ribeirão que ia do morro de São Bento até os cais, passando pelo santuário de Santo Antonio. E, na Conselheiro Nébias, foi encontrada uma caixa de ferraduras do tempo em que os bondes eram ainda puxados por burros. Assim, não são apenas os lugares de reconhecida importância histórica que podem guardar esses vestígios do passado.
O que este relato da descoberta desta cidade invisível sob a cidade atual pode ensinar às pessoas de hoje?
Zaida – Uma reflexão a respeito de tudo o que generosamente ainda se encontra guardado, preservado pela natureza e por alguns seres humanos e que, de tempos em tempos, vem à tona e nos presenteia com revelações e sabedoria.
Dos itens que foram encontrados, quais vocês consideram o mais interessante?
Maria Lúcia – Os frascos de loção e perfume, e as louças. Porque mostram como vivia a elite santista em fins do século XIX e começo do XX.
Que roteiro vocês indicam para quem quiser conferir um pouco da história viva da região?
Fábio – Em São Vicente, imperdíveis três pontos: o muro de pedra no Museu Casa Martim Afonso (a mais antiga estrutura de alvenaria do pais) que foi o primeiro fortim da mais antiga vila do Brasil; a Igreja Matriz com seus túmulos antigos dentro do próprio templo, e o Porto das Naus, na Avenida dos Tupiniquins, do outro lado da Ponte Pênsil (vale também uma ida à Biquinha do Anchieta e à Praça 22 de Setembro).
Em Cubatão…
Em Cubatão, o Largo do Sapo e, se der, uma “andadinha” pela parte conservada da Calçada do Lorena (o Largo era o ponto de chegada).
E em Santos?
Sem dúvida, o Centro Histórico, onde o difícil é selecionar o que ver primeiro: o Outeiro de Santa Catarina e a casa de João Éboli, o Conjunto do Carmo, a Igreja do Valongo, a Casa de Câmara e Cadeia, o Teatro Guarany, o Coliseu, o casarão-sede da Fundação Arquivo e Memória (FAMS), o Museu Benedicto Calixto, a Igreja do Valongo e a Estação da Estrada de Ferro, caminhar na XV de Novembro e se imaginar no século XIX, a Fonte do Itororó, o Monte Serrat, dar uma volta no Bondinho Histórico (que passa por diverso pontos), enfim, é muita coisa, sem esquecer uma visita aos Fortes espalhados no Estuário, que são joias arquitetônicas existentes na Baixada.