Artistas defendem ocupação de espaços para representatividade da cultura preta
19/11/2024Material produzido por alunos da UniSantos* com supervisão do JO
Talentos locais avaliam que apesar da crescente valorização, ainda faltam políticas de estímulo à arte preta; eles defendem a reflexão no Dia da Consciência Negra
“A arte é minha ferramenta para contar a minha própria história e também a de outras mulheres negras e periféricas, que raramente têm sua voz ou imagem representadas de forma autêntica. Entendi que fazer essas vozes ecoarem era mais que necessário”, afirma a fotógrafa Elisabete Furuya, conhecida como Bete Nagô. Ela, que começou sua trajetória no mundo artístico através da fotografia e do artesanato, acredita que a luta para a inclusão de pessoas pretas dentro de espaços artísticos, regional e nacionalmente, precisa ser constante e, portanto, uma das reflexões desta quarta-feira, data em que se celebra o Dia da Consciência Negras em todo o país.
Feriado em Santos desde 2008, o dia 20 de Novembro é festejado nacionalmente somente no ano passado, e mesmo diante desse lento avanço, Bete acredita que a valorização da cultura preta e o movimento artístico tem crescido no cenário atual. “A medida que mais artistas negras e negros se fazem presentes e ocupam espaços, há maior compreensão da riqueza e complexidade das narrativas pretas trazem respeito ao movimento”, avalia.
Mesmo assim, os desafios ainda existem, o reconhecimento da produção artística preta não é feito de maneira plena. Para quem é da periferia ou cultura marginalizada, a dificuldade não está apenas na produção. Encontrar espaços para divulgar e vender a arte também é uma desvantagem. “A falta de incentivo, de políticas públicas eficazes e a invisibilidade da arte negra são questões que dificultam nossa caminhada, mas seguimos firmes.” esclarece a fotógrafa.
A fotógrafa e artesã entende que embora hajam leis que garantem direitos, a implementação da legislação ainda esbarra em práticas discriminatórias e na falta de recursos. “Muitas vezes, a dificuldade não está na legislação, mas em como ela é colocada em prática”, explica apontando o crescimento da criação de editais e leis para incentivo de audiovisual, que ainda esbarram na inclusão de produções pretas. “No audiovisual, por exemplo, faltam financiamentos específicos para artistas negros e periféricos, além de mais oportunidades de visibilidade. A desigualdade ainda é um obstáculo para que alcancemos essa igualdade de fato.”
E isso ocorre não apenas em um único segmento, segundo o modelo e músico Rafael Sales, de 26 anos. “Quem é preto e periférico tem uma maior dificuldade em conseguir financiar o primeiro trabalho, precisamos dar o triplo dos outros para alcançar uma oportunidade”, aponta Sales, que diz ter que ficar procurando oportunidades por meio das redes sociais ou contar com a ajuda de conhecidos da área.
Sales, ainda se diz privilegiado, já que neste ano foi contemplado pelo edital da Lei Paulo Gustavo. No entanto, lembra que sua trajetória na vida artística foi profundamente marcada pela realidade de ser um artista independente negro. O cantor conta que sua paixão pela música e pela moda veio com a influência de amigos e que viu na arte uma forma de representatividade. “A minha ideia, com a música, é criar uma narrativa longe do estereótipo de como a sociedade enxerga um homem preto e alto, como alguém marrento e que não demonstra emoção, não é o meu caso, minha música é sentimental”, diz Rafael.
Sales destaca a importância de pessoas pretas ocuparem espaços artísticos na região e que existe a necessidade de criar uma consciência antirracista na população mostrando e valorizando a cultura preta. “Sendo de Santos, ainda enfrento o desafio de que a maioria dos trabalhos acontece em São Paulo, porque lá eles dão mais oportunidade para quem é preto, LGBTQIA+ e outras minorias. Aqui não temos essa visibilidade mas a realidade é que existem muitos artistas bons da música, do futebol, do teatro e do cinema na favela”, declara.
Por isso mesmo, a fotógrafa Bete Nagô defende que a luta antirracista e a busca por espaços deve ser uma prática rotineira entre artistas pretos. Por isso, o Dia da Consciência Negra é um marco, que deve ser comemorado como o reconhecimento do protagonismo negro no Brasil, especialmente após tantos anos de apagamento.
Discotecagem e Grafite
Assim como Rafael e Bete, Carolina Martins, mais conhecida como DJ Profana, também se destaca na Baixada Santista e na cidade de São Paulo ao levar a cultura preta para os palcos e espaços artísticos. A cubatense de 26 anos, possui um olhar artístico focado na representatividade e na valorização da arte negra, após um percurso marcado por muitos desafios e inspirações.
Ela afirma ter ingressado no meio musical como ativista da causa racial devido à ausência de representatividade dos artistas pretos na cena local. Inicialmente formada como atriz, Carolina também fez parte do coletivo Black Pussy Supremacy, focado em promover eventos para mulheres negras na Baixada Santista. “Em uma edição do evento, não havia nenhuma mulher negra na line-up, o que me motivou a me lançar como DJ e ter minha primeira experiência com controladora e mixagem”, conta. DJ Profana também destaca que a falta de participação de mulheres nas baladas e eventos da região ainda é um desafio a ser enfrentado.
Seu trabalho está profundamente ligado à essência da cultura preta, resultado, segundo ela, da influência do hip-hop e do funk em sua vida. Ela responsabiliza a própria família, que frequentava rodas de samba, curtia capoeira e estimulava diversas expressões da estética afrodescendente. “Todos os meus trabalhos são voltados para o público negro, composto 100% de artistas negros para comprovar a pluralidade de nossa música e cultura”, diz Profana.
DJ Profana ressalta que a luta pela valorização da cultura negra não deve se limitar a uma data específica, mesmo após o Dia da Consciência Negra se tornar feriado nacional. “Estamos ‘na pista’ o ano todo fazendo acontecer, por isso é importante estarmos valorizando cada vez mais a cultura negra e sua produção além de novembro”, enfatiza. Com sua trajetória, ela busca inspirar mulheres negras e jovens artistas. “Nada é um mar de rosas para nós, mas temos o potencial natural que nossa genética e legado carregam”, reforça.
A grafiteira de 35 anos, Veruska Barba, concorda. No bairro Morro da Penha, em Santos, ela utiliza o grafite como forma de ocupar espaços que antes pareciam invisíveis e expressar sua identidade. Suas “personas” — como chama as personagens de seus desenhos — são mulheres negras, representadas pela tinta marrom, que ocupam os muros da Baixada Santista.
Mãe solo, ela divide sua rotina entre o cuidado com os filhos e o desejo de impactar a sociedade através de suas marcas pelas ruas.
“Se eu, como pessoa, não sou vista, minha arte é”, diz. Para a grafiteira, a arte urbana é um canal de expressão, uma forma de ocupar espaços públicos com identidades que ali se encontram, mesmo que muitas vezes ignoradas. “Se uma pessoa conseguiu captar a mensagem, então o trabalho está feito. Eu sou útil ao mundo, eu faço alguma coisa para contribuir com a sociedade”.
Veruska, conhecida artisticamente como “Vevss”, relata que levava uma vida estável em São Paulo até a chegada da pandemia da Covid-19. “Era tudo ótimo. Eu tinha um emprego estável, estudava na faculdade de Artes, estava tudo ‘da hora’. Aí veio a pandemia e levou tudo. Perdi o ‘trampo’, não consegui pagar a faculdade e não consegui fazer mais nada”.
Foi quando ela decidiu se mudar para Santos, onde está há apenas um ano, apesar de afirmar que sente que sempre foi o seu verdadeiro lugar. “Eu nunca tinha vindo a Santos, e, na primeira vez que eu vim, parecia que já conhecia todo mundo e que todo mundo já me conhecia há muito tempo”, relata, atribuindo essa sensação de pertencimento à força do movimento artístico na região.
Na Baixada Santista, Veruska se firmou como artista e começou a se sustentar com suas artes. Ela explica que, além de ser contratada para pintar em eventos, onde recebe o cachê e o material necessário, atua também como autônoma vendendo seus quadros e obras, que são feitas através de reciclagem.
No entanto, Veruska aponta que, muitas vezes, os mesmos nomes continuam em evidência, enquanto outros artistas ficam de fora por falta de visibilidade. Segundo ela, é necessário mais incentivos e oportunidades para que esses artistas ganhem espaço e ajudem a movimentar a cena local.
Apesar disso, ela encontrou espaços que a ajudaram a se integrar e conquistar reconhecimento. “Se você pegar as brechas certas, você também consegue se envolver”, diz. A artista menciona que já participou de alguns projetos, como os documentários do coletivo Olhar Marginal e Lab Audiovisual, além de ter sido convidada para aplicar uma oficina no Instituto Arte no Dique.
Luta pelas palavras
Artistas pretos são reconhecidos muitas vezes apenas em sua bolha e nunca saem disso por falta de espaço, avalia a escritora e poeta, Julie Lua, de 38 anos. Esse afastamento, segundo ela, é o que mantém esses artistas longe do público geral, resultado muitas vezes, impulsionado pela falta de apoio financeiro por parte dos governos municipais, que preferem investir em artistas grandes e em shows maiores do que em artistas regionais e menores.
“Meu intuito com minha arte é potencializar mulheres. Faço isso, como forma de reconhecer outras mulheres pretas e o quanto que nossa vida é ceifada a partir de vários lugares como o da maternidade, do trabalho doméstico e do trabalho exploratório”, explica a escritora que busca reconhecer a própria dor e seu lugar dentro da sociedade.
Sobre o 20 de Novembro, ela avalia o Dia da Consciência Negra como uma data de celebração, já que há o reconhecimento de diferentes artistas pretos. Mas reforça o quanto a Baixada Santista e o Brasil ainda têm a percorrer no reconhecimento da cultura e da parte preta, já que os projetos devem ser valorizados ao longo do ano e não apenas em um único dia.
*Alunos autores da matéria: Beatriz Rodrigues, Breno Sant’Anna, Bruna Lima, Manuela Patrício, Maria Luiza Souza e Nathalia Alves