Fernanda Montenegro é uma libriana de 16 de outubro de 1929. Vai completar 95 anos no mês que vem. Uma mulher do século passado. Da primeira metade do século passado, aliás. Uma dama. Uma dama atualíssima. Uma dama do século 21. A grande dama deste Brasil do século 21.
Quem teve o privilégio de assistir a um desempenho de Fernanda Montenegro no teatro diz que se trata de uma experiência inesquecível. Mas quem não tem no currículo essa vivência, não precisa ficar triste. Tem a Fernanda Montenegro da novela de televisão. Tem a Fernanda Montenegro do cinema. E tem a mais impressionante de todas essas fernandas: a da vida real.
A das novelas protagonizou cenas inesquecíveis, como aquela clássica, da guerra de comidas, um tacando no outro, com o também monstro sagrado das artes cênicas, Paulo Autran, em Guerra dos Sexos, de 1983. Fernanda cômica.
Dois anos antes, em Eles não Usam Black Tie, Fernanda Montenegro tinha conferido uma carga dramática de raríssima intensidade a uma cena que poderia ter sido banalizada por outra atriz. Ela aparece escolhendo feijões para preparar o almoço depois de ter tido a vida devastada pela prisão do filho numa greve. Vida que seguia…
Em 1998, foi indicada ao Oscar de melhor atriz por outra atuação maravilhosa: a professora aposentada Dora, em Central do Brasil, do diretor Walter Salles. Mais um desempenho inesquecível.
Em 2019, um episódio marcante da Fernanda de carne e osso. Em novembro daquele ano, se tornou público que Animais Fantásticos: os Segredos de Dumbledore, terceiro filme da série, teria cenas gravadas no Brasil. E que a ministra da Magia, Vicência, seria uma personagem brasileira. Os fãs brasileiros de Harry Potter montaram um pedido com dezenas de milhares de assinaturas para que a atriz fizesse o papel. Ela recusou educadamente. Explicou que estava com a agenda repleta para 2020.
“Como assim?”, muita gente se perguntou. “Como assim?”. Uma atriz de 90 anos chega no final de um ano com a agenda do ano seguinte toda preenchida?
De lá pra cá as agendas da atriz continuaram todas preenchidas. Com o brilho de sempre. No festival de Veneza deste ano, lá está Fernanda de novo fazendo um pequeno papel em Ainda Estou Aqui, do mesmo Walter Salles, prêmio de melhor roteiro.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro Fernanda Montenegro lota pequenos e grandes espaços para encantar plateias de todos os tipos com a leitura de textos da filósofa francesa Simone de Beauvor, expoente do feminismo nascente no século passado. O curador do Mirada, Festival Íbero-Americano de Teatro, Tommy de La Pietra, assinala que ela interpreta inclusive descrições recheadas de libido quando a filósofa faz reflexões sobre a controvertidésima relação afetiva aberta que mantinha com o também filósofo e também genial Jean Paul Sartre.
Parece não haver limites para o talento e a vitalidade de Fernanda. Nem para a coragem. Nos últimos anos ela se tornou alvo de discursos de ódio nas redes sociais pela postura de defesa clara e serena da liberdade de expressão, pilar da democracia e conquista mais importante do país no último século.
Contra a saliva peçonhenta de uma raivosa boiada fundamentalista, que tenta colocar na classe artística a responsabilidade pelas patinadas do país, Fernanda reage só com o que de melhor existe no ser humano: talento, ética solidariedade e coragem. A coragem de uma verdadeira dama. Da grande dama do país neste século 21.
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