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Vozes de Tchernóbil

11/11/2020
Vozes de Tchernóbil | Jornal da Orla

O século XX poderia ter sido o tempo das luzes de todos os homens. Os avanços na técnica, o alargamento do tempo de vida, a humanidade se lançando ao cosmo e a crença num futuro de liberdade encheram os corações de esperança. Mas vieram os terríveis “poréns”, duros demais para serem ignorados: duas guerras mundiais – uma delas com objetivos monstruosos-; outros tantos episódios terroristas respondidos da pior forma possível por políticos inaptos e, ainda, o desastre nuclear de Chernobyl em 1986. Um século, portanto, difícil e não muito promissor do ponto de vista das humanidades. 

 

A ucraniana Svetlana demorou mais de 10 anos pós-desastre para concluir seu livro Vozes de Tchernóbil. Nele reuniu uma série de depoimentos de pessoas que enfrentaram o desastre nuclear de perto, dando holofotes à chamada história omitida; ou seja, aquela sobre a cotidianidade dos pensamentos, a vida ordinária das pessoas comuns. O resultado é um livro repleto de inacreditáveis narrativas dos trabalhadores da central nuclear, de cientistas, médicos, soldados e residentes. Experimente ler o primeiro relato do livro (“uma solitária voz humana”) e sinta a vertigem do impacto.

 

Svetlana foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2015. Foi uma das raras escritoras de não ficção a conseguir alcançar esta que é a coroação máxima da vida oficiosa dos literatos. A Academia de Estocolmo justificou a escolha da ucraniana por seus livros representarem uma "obra polifônica, um monumento do sofrimento e da coragem em nosso tempo". Seu estilo, talentoso e original, ostenta as ricas qualidades da literatura em língua russa, que tantas vezes assombrou o mundo com seus eternos e geniais escritores. 

 

Leia mulheres!

 

Motivos para ler:

1 – O desastre de Chernobyl apavorou o mundo porque ninguém estava preparado para aquilo. As nações já pensavam em guerras atômicas, mormente depois de Hiroshima; mas não cogitavam num acidente civil desta proporção: “a catástrofe aconteceu num centro atômico não militar, e acreditávamos que as centrais nucleares soviéticas eram as mais seguras do mundo. O átomo militar era o de Hiroshima e Nagasaki, o átomo da paz era o da lâmpada elétrica. Ninguém imaginava que ambos os átomos, o de uso militar e o de uso pacífico, fossem gêmeos.” (pg. 42); 

2 – O livro de Svetlana inspirou a criação da premiada minissérie Chernobyl, elaborada pela HBO. A curta série (5 episódios) recebeu 19 indicações e venceu nas categorias de melhor direção, minissérie e roteiro;

3 – Svetlana concluiu que “algumas vezes, parece que estou escrevendo sobre o futuro”, ao desacreditar num futuro próspero. Pode ser. Note que, assim como os soviéticos procuraram esconder os efeitos devastadores do desastre nuclear para proteger a áurea do regime, hoje políticos populistas minimizam os nocivos efeitos da pandemia para não arcarem com o custo político do problema. Se ontem os soviéticos especularam que o desastre teria eclodido por sabotagem de espiões ocidentais, hoje há quem sugira delirantemente que o Covid-19 seria uma arma chinesa contra o mundo ocidental. Perceba que, apesar das ideologias de sinal trocado, os comportamentos políticos convergem num mesmo sentido: a negação da desgraça como forma de autoproteção do establishment. Há esperança para este mundo?

 

 

 


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